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A ironia de Sara Victoria em “Caralho A4”, um livreto sobre a invencível realidade

“Difícil é competir com a realidade”. Esta é a frase de Sara Victoria que abre o Caralho A4, livreto cujo texto é ladeado pelas ilustrações da própria autora. Sara nasceu em Berlim, na então Alemanha Oriental, e veio para Salvador, onde se fixou, depois de passar por Londres e São Paulo. É artista plástica, e Caralho A4 é sua estreia literária. Aliás, o livro, enquanto objeto que se pega na mão, se toca e se manuseia, já é interessantíssimo por si só. Pertence à coleção Cartas Bahianas, é do tamanho e formato de um envelope, e sua capa é vermelhíssima. Foi lançado em 2014, em Salvador, pela P55 Edições e é um convite à leitura, pelo menos para quem gosta de livros de bolso, como eu, que os prefiro mil vezes a qualquer belíssimo e lustroso livro de capa dura.

Os contos que Sara nos apresenta são mesmo árduos, quase tanto quanto a realidade, e pode-se dizer que têm em comum com ela, a realidade, certo aniquilamento existencial e psíquico diante de uma vida que se parte em restos. Essas narrativas curtas são árduas sim, mas não deixam de ser engraçadas e surpreendentes a um só tempo, porque se a realidade sempre está no pódio ocupando os três lugares, ela também faz rir e surpreende. É absurda, irônica e hilária, ainda que aniquiladora. Portanto, Caralho A4 é um livro leve, e nisso ganha da realidade, ouso dizer.

O tema do resto e a presença do cigarro são uma constante nesse opúsculo carmesim. O primeiro conto, o genial ‘O Cara vale’, trata exatamente de um resto de vida e do valor dos restos fisiológicos, bioquímicos e físicos, digamos assim, do corpo humano. O protagonista que nos guia em sua saga parece estar nas últimas de si mesmo. Ele é o resto em si, o puro resto, o arquétipo que condensa todas as sensações que poderiam ser ligadas a esse conceito vago e sofrível. “Sentindo-se um resto de ser, com resto de café, resto de cigarro, deparava-se com um resto de jornal”. O jornal aos restos que o Cara encontra largado traz boas novas: então algumas enzimas suas podem valer dinheiro? Há substâncias biológicas que circulam em seu corpo que podem ser traduzidos em valor monetário? Talvez haja uma solução no fim desse tão comprido túnel, e ele, o Cara, corre atrás dela, entusiasmado, alcançando insights em cascata em seu percurso até a clínica que pesquisa as enzimas através de testes e mais testes. Esse protagonista que espera recuperar sua vida vai imaginando seu valor no corpo: “Temos um preço, viva a ciência!”.

Caralho a4 imagem

É possível dizer que esse primeiro conto, com sua veia de humor e desespero (aliás, um humor que só é passível de caber no desespero, e cuja função precípua é afrouxar a camada de espinhos que todo desespero contém), é uma espécie de crônica dos nossos tempos: a vida difícil e sem sentido que muitas vezes levamos (tão próxima à vida nua, de que nos fala Agamben, em seu Homo Sacer), uma vida que só adquire significado através de um preço, o qual, por sua vez, está diretamente relacionado à ciência, ao concreto, àquilo que se toca, que se mede, que se pode decupar em números e unidades, que se pode catalogar em manuais fáceis de ler e, de preferência, resumidos, poucas páginas, poucas linhas, texto em formato de lista. E, mais ainda, o valor que confere sentido à vida-resto que levamos, que o Cara leva, ele, seu cigarro e seu jornal, é dado pela medicina, pelo saber médico, sem simbolismo algum. Há trechos brilhantes especificamente sobre esse ponto: “Até que chegou a hora dos resultados. Estava feliz. Saberia finalmente o seu valor exato, tabelado por uma junta médica da mais alta competência.” O motor que move o personagem e o faz correr atrás de alguma coisa é o dinheiro que seu corpo (ou as substâncias que ele produz) pode adquirir. Não é estranho? Ou já faz parte da normalidade? Ou estranha sou eu?

Para dar mais um exemplo específico da literatura de Sara Victoria, tenho de mencionar o quarto conto de Caralho A4. O texto, que ajuda a constituir essa unidade literária cujo mote é o miserê em que a alma humana às vezes se atola, traz um operário exausto que não se reconhece em sua família, seus filhos, sua casa. Há um estranhamento que o leva a se perguntar quem são aquelas pessoas ao seu redor, quem é aquela mulher que o recebe afetuosa, há um estranhamento que o faz abaixar a cabeça, na falta de reação melhor e de afeto recíproco. A narrativa, aqui, é permeada pelo incômodo como resultado do que encontramos de tão propriamente nosso refletido no outro. A mulher é um estranho familiar, tão próprio do Unheimlich freudiano. No texto traduzido para o português como O Estranho, Freud nos fala da estranheza familiar que encontramos no outro e que nos assusta, por ser um irreconhecível que nos pertence, que é tão inequivocamente nosso, um irreconhecível que seria reconhecível se não fosse tão assustador. O personagem de Sara Victoria não sabe mais quem é essa mulher com quem divide a vida, a família, a casa e os filhos, essa mulher que engordou tanto e que pode ter se tornado outra pessoa. Mas, à medida em que se torna outra, ela acaba por indicar a possibilidade de que ele já não seja mais o mesmo. A mulher é um índice do que ele pode ter se tornado, tão ele, tão outro. “Toda a poeira da casa começava a se incrustar em mim. Será que hoje me pareço com eles?”, é o que se pergunta, desolado, enojado, o protagonista.

Eu dizia, à guisa de conclusão, que o cigarro é uma constante nos contos de Caralho A4, junto com a temática do resto. Sim, o cigarro está sempre presente, sobretudo fechando algumas das histórias. Ele é frequentemente uma solução, uma companhia ou o galho que nos impedirá de afundar entre as mágoas guardadas e a vida que nos pertence mas que não mais reconhecemos como nossa. Deve ser por conta desse miserê, da realidade sempre ganhadora (e avassaladora), do vazio que emoldura o território sobre o qual caminhamos, e também por conta de certos inventários que por vezes fazemos de nossas vidas e que levam a frustrações frequentes, deve ser por conta desses elementos, distribuídos pelo livro com ironia e humor, que o cigarro está sempre perto. Ao alcance da mão ou como objeto a ser procurado na vizinhança. O cigarro que sempre fumamos, que nunca havíamos fumado e que iremos, por que não?, acender pela primeira vez. Resumo da ópera: leiam Caralho A4. Dói absolutamente menos do que a realidade.

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