Veja Hannah Arendt e sinta-se mais inteligente

Barbara Sukowa de Hannah Arendt

Uma vez li uma frase de Karl Marx de que gostei muito: “A filosofia está para a vida real como a masturbação está para o sexo”. Na época, conversei longamente com um amigo sobre a tal frase enquanto bebíamos uma cerveja. Ele, mais inteligente que eu, foi preciso na descrição. Disse-me que entendia dali que a filosofia era tão improdutiva como a masturbação. Passei a adotar essa interpretação. Gosto da frase porque ela reflete um pouco do que penso sobre filosofia – embora seja uma generalização meio criminosa essa do Marx. Talvez simpatize com ela por uma falta de aptidão enorme para compreender os filósofos ou por achar que posso viver impune sem filosofia hardcore (mas não sem aquela boa e velha do boteco) assim como posso fazê-lo sem religião. Li muito pouco de filosofia até hoje. As experiências foram quase sempre por conta de tarefas da faculdade. Por essas e outras, tudo que li de Hannah Arendt, a judia famosa por ter sido pupila de Heidegger, foi um capítulo de seu Origens do Totalitarismo. Mesmo assim, aos trancos e barrancos. Possivelmente, você, paciente leitor, deve ter se perguntado: “Então, por que diabos o cara vai escrever sobre um filme que fala dela!?” Eu respondo: “Deixe-me em paz! Eu escrevo sobre o que bem entender, ora.” Isso porque sou rabugento. Mas a verdade é que, como obra cinematográfica, o filme intitulado Hannah Arendt, da diretora alemã Margarethe von Trotta, é um exemplo de como contar a história de alguém por meio de um longa-metragem. Por isso, eu quero sugerir que você assista o filme. Entendeu agora?

Barbara Sukowa de Barbara Sukowa
Barbara Sukowa de Barbara Sukowa

Eu tenho sempre muita desconfiança de filmes que se propõem a contar a história do sujeito desde o momento que sai do útero de sua mãe até a sua morte. Para mim, o cinema biográfico funciona muito melhor como retrato de um período razoavelmente curto. Ali ele consegue entrar nos detalhes, captar as nuances, fazer uma descrição mais íntima de determinada figura. Portanto, o filme sobre a filósofa judia já sai ganhando por se ater a um período maduro de sua vida, em que ela decide cobrir o julgamento do nazista Adolf Eichmann em Jerusalém, para a revista New Yorker,  e o resultado é um texto cheio de polêmicas que torna a vida dela um inferno. Todo o processo de descobrir sobre o julgamento quando ainda estava em Nova York, se propor a cobri-lo para a tradicional revista da cidade, escrever o texto em um ritmo próprio, sem admitir as pressões por prazo que é típica do jornalismo e tudo mais que vai acontecendo dentro desse período limitado ajuda a mostrar bem que figura é essa tal de Hannah Arendt. A sua arrogância, sua falta de sensibilidade, os flashbacks de quando aprendeu a ser uma filósofa com Heidegger… Todos esses elementos que ajudam a formar o personagem histórico entram no filme, embora ele seja, como havia dito, o retrato de um momento. As discussões que Arendt levanta em suas conversas com amigos sobre o teor do julgamento é o que enobrece a trama. O ponto principal que ela elabora é o de que Eichmann fora julgado não por suas ações individuais, mas as acusações que foram feitas contra ele davam conta de um revanchismo dos judeus na primeira oportunidade pós Holocausto. Como explica bem o marido de Arendt, era o julgamento da história, não do indivíduo. No artigo na New Yorker, Arendt defende a ideia de que Eichmann cumpriu ordens ao transportar judeus para campos de concentração e que ele foi incapaz de julgar se essas ordens eram certas ou erradas: afinal, elas eram a lei do momento. Um argumento absolutamente racional, mas, ao meu ver, coerente. E é entre a compreensão da racionalidade de Arendt e a inquietude com sua falta de sensibilidade que o espectador tem a oportunidade de julgar se seu artigo foi ou não um erro, se ele seria um dos leitores que falou mal ou que falou bem da filósofa.

A verdadeira Hannah Arendt
A verdadeira Hannah Arendt

Hannah Arendt não é um filme que desce redondo. Ele acaba parecendo longo por conta dos diálogos pesados que às vezes os personagens travam. Talvez por isso não esteja em muitas salas de cinema. Mas a recompensa no final é maior que uma mera cereja. Não pense que Hannah Arendt é uma história árida. Não é. São reflexões um pouco filosóficas, mas que qualquer paspalho que compara filosofia com masturbação como eu fiz pode entender e apreciar. Só que no fim você se sente maior, com mais conhecimento, com ideias mais sofisticadas. A defesa que Arendt faz de seus pontos de vista é emocionante, ainda mais posto que a atriz alemã Barbara Sukowa faz seu papel com tanta intensidade. Uma sugestão é que o filme seja acompanhado por uma discussão de botequim a posteriori. Vale o papo porque von Trotta teve o mérito raro de fazer um filme que gera o contraditório, que dá pano pra manga, que faz a gente ter interpretações diferentes sobre os imbróglios racionais da filosofia cinematográfica. Essa sim, muito menos difícil de compreender que os escritos de um Heidegger. E é por isso, meus amigos, que eu adoro a sétima arte.

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