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Entrevista com o poeta Fabio Weintraub

Fabio Weintraub é editor, poeta, professor, doutor em Letras pela Universidade de São Paulo. Entre outros títulos, publicou: Falso trajeto (São Paulo: Patuá, 2016), Treme ainda (São Paulo: Editora 34, 2015) e Baque (São Paulo: Editora 34, 2007). Tem poemas traduzidos para o espanhol, o catalão e o inglês, e livros publicados em Cuba e Portugal. Em 2003, pelo livro Novo endereço (Juiz de Fora/ São Paulo: Funalfa/ Nankin), obteve o Prêmio Casa de las Américas, em Havana, Cuba. Confira abaixo a conversa com a Revista Ambrosia.

Ambrosia: Você tem vinte anos de carreira poética, como surgiu a ideia de fazer esta coletânea e como foi a edição do livro reunindo estes 50 poemas?

Fabio Weintraub: Confesso que me sinto um pouco desconfortável diante de expressões como “carreira poética”. “Carreira” dá a ideia de algo que você conduz com planejamento, relativo controle, numa direção linear, vencendo etapas, mudando de nível, de faixa, vivendo exclusivamente daquilo e para aquilo. Talvez seja lícito falar em “carreira artística” no caso da música, do teatro, das artes plásticas, mas julgo que na literatura é um pouco diferente. Sobretudo na poesia, em que a maioria dos autores trabalha de modo interrupto, lacunar, dividindo tempo com outros afazeres, como aulas, artigos, traduções etc.

Creio também que o trabalho do poeta é um pouco diferente daquele do romancista, que precisa escrever todos os dias, seguindo um planejamento estrito para não perder o pulso do enredo, o contorno das personagens – o que parece demandar maior planejamento, disciplina, constância. Devem existir, é claro, poetas disciplinados, que versejem todos os dias conforme projeto estrito, mas eu não sou assim. A maioria dos meus amigos poetas tampouco. Uma vez ouvi alguém brincar dizendo que é por isso que a gente briga tanto: enquanto os romancistas estão trabalhando, os poetas, depois de dois ou três rabiscos, saem para beber, maldizer e rivalizar. Se non è vero

Mas, voltando à pergunta, com meu livro mais recente, Falso trajeto (São Paulo: Patuá, 2016), decidi comemorar não exatamente duas décadas de carreira, mas de publicação, a contar do meu livro de estreia, Sistema de erros, que saiu em 1996, na coleção ah! da editora Arte Pau-Brasil, capitaneada pelo Alonso Alvarez. Sistema de erros saiu na mesma época que Do silêncio da pedra, do Donizete Galvão, grande poeta e amigo, falecido em 2014, de quem eu viria a me tornar editor anos mais tarde, e que eu conheci naquela ocasião, em 1996. Antes eu havia publicado uma plaquete pela editora do Massao Ohno, Toda mudez será conquistada, e coletâneas com o grupo Cálamo, ligado à Casa Mário de Andrade, de que eu participei de 1991 a 2002.

Ao longo desses vinte anos publiquei apenas quatro livros individuais, em média um livro a cada cinco anos. Resolvi então em recolher 40 poemas desses quatro livros e mais dez novos, em parte publicados em revistas ou antologias coletivas. Ao efetuar a seleção, pensei em agrupar textos de diferentes livros de modo a acentuar algumas vertentes da minha produção: poemas sobre a cidade e seus párias, poemas de família, peças sobre pobreza e adoecimento, textos eróticos (como o que dá título ao livro, sobre fisting), entre outras linhas temáticas.

Do ponto de vista formal, quis também reunir peças representativas do que tenho feito: monólogos dramáticos, poemas em vozes e um poema em prosa, com o qual o livro se encerra. Ainda que o livro seja uma seção única de poemas, sem divisões, busquei agrupar textos por afinidade ou contraste, propondo às vezes certo encadeamento narrativo subterrâneo entre blocos temáticos.

De início, pretendia equilibrar o número de poemas de cada livro representado na amostra, mas acabei abrindo uma exceção em relação ao primeiro, do qual retirei apenas dois poemas, contra doze ou treze de cada livro posterior. Minha ideia não foi fazer simplesmente uma retrospectiva, mas escolher, ao longo do meu percurso, composições em que eu ainda me reconhecesse (algo na linha do que propunha o Murilo Mendes, “Não sou meu sobrevivente, e sim meu contemporâneo”). Daí a dificuldade em escolher poemas do meu livro de estreia, que hoje vejo com uma obra imatura, cujos poemas testemunhavam sobretudo minha experiência como leitor.

Somente a partir de Novo endereço, publicado em 2002, encontrei uma expressão mais pessoal, lastreada pela experiência (individual e coletiva), em que as fontes literárias, a mediação da tradição, dos poetas que eu li e admiro, entram como um elemento entre outros. Na introdução desse Novo endereço, Priscila Figueiredo, poeta que conheci no Cálamo, professora e crítica extraordinária, escreveu:

“É difícil demarcar a fronteira entre as influências literárias ou mesmo identificá-las com segurança, porque podem ser influências que atuaram antes no leitor ou então escapam ao repertório deste. As assimetrias nesse caso são grandes, sem contar que literatizamos demais nossa relação com a literatura, tomando por sugestão livresca o que talvez seja bem outra coisa.” 

Concordo com ela e aposto cada vez menos na ideia de uma literatura criada por partenogênese. De Novo endereço para frente, me achei como um poeta que trabalha primordialmente com observação, para quem a intertextualidade implica fortemente a dimensão da fala, da palavra dita, a mistura de registros, a incorporação de fontes não literárias (textos técnicos, jargão médico, gírias de rua etc.), de modo a sobredeterminar os sujeitos e locais de enunciação.

Digressões à parte, a verdade é que, ao organizar o Falso trajeto, não me preocupei em reconstituir as etapas do meu percurso ao longo do tempo: privilegiei textos que correspondessem às minhas convicções atuais e não hesitei em reescrever poemas, cortar versos inteiros.

Com relação ao processo de edição, pedi ao Eduardo Lacerda, da Patuá, que o projeto do livro ficasse nas mãos de duas amigas queridas, Laura Daviña e Natália Zapella, e que a impressão fosse em duas cores, no que fui prontamente atendido. Eu também já tinha a ideia de usar na capa uma gravura de Gerárd de Lairesse, prancha de um atlas de anatomia holandês do século XVII (uma imagem médica, como a foto da capa de Treme ainda, meu livro anterior, que reproduz uma sessão de eletroconvulsoterapia no século XIX). Essas referências ao universo médico me fascinam e têm tudo a ver com os poemas, com o título do livro, que também é uma expressão médica, e com a epígrafe que escolhi para abri-lo, extraída de um manual de enfermagem.

Por fim, uma das coisas que mais me alegra em relação a esse livro é notar, da parte dos leitores, a surpresa diante de poemas mais antigos, que alguns deles não conheciam, ou de poemas que, embora conhecidos, passaram a ser considerados sob outra luz por causa do novo contexto em que foram inseridos.

  • Seu trabalho é uma ourivesaria do poema, fiquei muito impressionado como você tem uma técnica de colocar o sentido no exato lugar onde você quer, muito as vezes no final, como ocorre, por exemplo, no poema “Gerenciamento antiestresse”. É como se você fosse sugestionando o tempo inteiro a ideia do poema até o ponto onde você explode com uma centelha. Como é esta carpintaria de produzir esta abordagem?

FW: Como em relação à “carreira” na pergunta anterior, cismo aqui com termos como “ourivesaria” e “carpintaria” para descrever o trabalho poético. O primeiro evoca a estética parnasiana (“Invejo o ourives quando escrevo”, diz o célebre verso de Olavo Bilac) e ambos remetem à ideia da criação poética como trabalho artesanal, paciente e exato. Esse elogio do artesanato, embora ressurja ciclicamente, passa ao largo de várias discussões da arte moderna sobre a incorporação ao âmbito artístico do inacabado e do impuro, do excesso e da mistura, do improviso e do enxerto – o que não significa de modo algum falta de consciência nem de apuro técnico.

Especificamente no meu caso, que gosto de trabalhar com o grotesco e o escatológico, que encareço a mistura de registros e linguagens, que me interesso por paradoxos afetivos (especialmente por certo tipo de compaixão cruel, presente em muitos poemas meus), pretendo ficar mais próximo do açougueiro que do ourives, sem ter de abrir mão de certos preciosismos, de expressões de cunho elevado, em desuso etc.

Feito esse esclarecimento, creio que, no poema a que você se refere, o desfecho surpreende pela reversão da expectativa criada: o cenário é bucólico, as imagens são doces, suaves, tudo inspira paz e calma até que, no último verso, o leitor se dá conta que está diante de uma cena de assassinato.

O fim do poema é desde sempre um baita desafio, um ponto em que se interrompe aquilo que, segundo Agamben, constitui a essência do poético: o descompasso entre a série métrica e a sintática, entre o som o sentido, assegurado pelo enjambement que exatamente aí, onde o poema se encerra, não pode mais ocorrer.

A reversão de expectativa é um caminho de resolução, que não deve se rotinizar, sob pena de perder a eficácia. Em Falso trajeto os fechos variam: há fechos em refrão (como em “Mais magro”), fechos de recolha (do que foi disseminado nas estrofes precedentes, como em “Mãe e filha”), fechos bastante apoiados na quebra rítmica, como em “Mão e perna”, entre outros exemplos. Sinto também que tenho certa preferência por fechos anticlimáticos e fico me policiando para não tomar esse rumo no piloto automático.

  • Seus poemas são extremamente alusivos na forma da sua construção, na abordagem de temas ou comportamentos. E sempre fica nas entrelinhas algo meio escondido (mas de certa maneira que se revela) Como é este processo de iniciar o poema e o seu desenvolvimento tendo em vista este processo?

FW: Não me considero um poeta especialmente alusivo, afeito à metaforização intensa, à rarefação referencial – o que não significa que não haja condensação de sentido no que eu escrevo, mas julgo que ela é alcançada por meio de outros procedimentos. Para dar um exemplo: no Treme ainda, livro que lancei em 2015, uma questão que aparecia em vários poemas era a de certa “teatralidade deslocada”.

Eu queria usar elementos da esfera cênica, teatral, como a separação entre palco e plateia, a noção de público/audiência, para falar de situações totalmente distantes desse universo: duas pessoas numa fila de restaurante aguardando a mesa, um doente terminal em seus últimos momentos…, e coisas do gênero. Esse uso deslocado dos códigos cênicos, que me levava a tratar situações não teatrais de modo teatral, tinha a ver com a experiência que venho tendo há alguns anos com minha mãe, que, portadora de Alzheimer, tornou-se refém das repetições ligadas à deterioração da memória.

Para os familiares é muito doloroso entrar nesse mundo de repetições, de falas e gestos que voltam e voltam, indefinidamente. No começo, isso me irritava, me tirava do sério. Até que um dia tive um estalo: “Estamos ensaiando, é isso! Vamos repassar a cena infinitamente, até sair perfeita”. A descoberta de início me fez rir um bocado, mas depois fui me pacificando com a sensação de que a repetição não é estéril, mesmo que ela faça mais sentido para os coadjuvantes que para a protagonista.

Então, em Treme ainda vários poemas inventam esse espaço teatral e criam uma audiência fictícia, flagrando muitas vezes situações de vexame ou fiasco de alguém identificado com a posição do artista. O Renan Nuernberger, poeta amigo e excelente crítico, disse que uma das sacadas do livro é justamente lidar com a noção de público não como um espaço de integração democrática, mas sim como um espaço comum de vexame, que congraça o “artista” aos cidadãos de segunda categoria (ou que se veem dessa forma).

Pois bem, no primeiro poema do livro novo Falso trajeto, intitulado “Dentro da placenta”, de certa maneira eu caminho na direção contrária: descrevo uma situação teatral como outra coisa, uma relação intrauterina. É só um exemplo do esconde-esconde que os poemas podem propor ao leitor.

Quanto ao processo de criação e desenvolvimento de cada poema, não há regra geral, cada caso é único. O poema nasce às vezes de um ritmo, de uma imagem, de uma cena que se testemunhou, uma fala que se ouviu. Alguns textos surgem mais prontos e outros passam por várias versões, infinitos retoques. Às vezes, de um poema longo fica apenas um verso, ou nem isso, uma palavra ou imagem, que vão desembarcar em outro poema. Cada caso é um caso.

  • Você cita no prefácio que a falsidade é congenial ao poema. É uma ideia bem interessante. Fale um pouco sobre isso.

FW: A formulação talvez pareça nova, mas na verdade remete à velha ideia da verossimilhança aristotélica, de que o compromisso do poeta não é com o que aconteceu de verdade, mas com o que poderia ter acontecido. Essa prevalência do possível/plausível sobre o certo é o que chamei de falsidade, mas que também poderia chamar de fingimento, numa vertente mais pessoana.

Em medicina, o falso trajeto (a “liberdade” da sonda em relação ao caminho anatômico) é uma intercorrência funesta, um desvio a se evitar, ao passo que, na poesia, ele é condição de existência.

  • Tem algum novo projeto a caminho?

FW: Venho do lançamento de dois livros em anos consecutivos, 2015 e 2016, algo excepcional para um poeta preguiçoso como eu. Atualmente estou desenvolvendo uma pesquisa de pós-doutorado sobre a prosa de ficção da Hilda Hilst, que deve se estender pelos próximos meses. Gostaria também de reservar um tempinho este ano para rever minha tese de doutorado, sobre as figurações da cidade na poesia brasileira pós-1990, para uma possível publicação.

No campo da criação poética, tenho algum material novo, mas tudo muito embrionário, apontando em várias direções. Também acredito que não se deve falar muito do que ainda está em processo, não por superstição, mas simplesmente porque falar por si só já é um prazer, prazer que faz concorrência ao prazer da criação. O capital libidinal da gente é limitado, se você coloca em um lugar, está tirando de outro. Por isso é fundamental definir um rumo, um trajeto, falso e fecundo, para canalizar nossa energia.

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