FLIP: Modos de Olhar – Memória de bolso

flip_2009

A cor é cinza, quando chego em Paraty. Cinza com chuvisco, daqueles dias bem paulistas. Perdoem meu egocentrismo, mas acho que esse tempo de manhã foi só pra mim. Só pra eu lembrar da minha cidade, só pra eu me lembrar de todas as ruas pelas quais andei até chegar às pedras irregulares do Centro Histórico – onde todo o cinza fica esquecido perante tantas e tantas cores.

As ruas espalham cores pelas janelas, me trazem à cabeça o som de saltos pisando em corações sobre as pedras, as carruagens trazem o burburinho de pessoas e pessoas. Não é o tempo nem o lugar, não é o dia nem os convidados. Mas as pessoas, ah, as pessoas! A velha que ri na porta, o sujeito com violão tocando sobre a dura poesia concreta das esquinas, o saxofone na ponte, duas princesas andando pela rua, brincando de amarelinha nas pedras e abençoando o cachorro que dorme na porta da loja. Poderia recitar Bandeira, cantar Chico, pensar em citações bonitas. Mas a poesia que se vive pelas ruas nesses dias de festa, o que a repórter chamou sorrindo de “vibe”, é quase tão palpável quanto o sorriso de um monte de crianças tirando fotos na boca da baleia.

No fundo é pelas pessoas que estou lá. Porque a literatura nada mais é que outras pessoas, outras histórias, outros passados e futuros. A literatura também pode ser celebração, um livro pode ser bem mais que um livro. É nisso que penso, é assim que me sinto, deitada numa rampa antes de cair num cochilo ao lado do telão. Estou em Paraty pela festa. Pela minha festa de ver novas ruas, pela nossa festa de brincar de autores importantes, por ver o resultado de dois anos de saídas, pastéis, leituras e contos em um bloquinho com capa verde. Um livro publicado é um filho que nasce, e se engana quem pensa que a criação só pode ser solitária. Mais que a mim, reconheço aos meus amigos no bar essa noite, brindando com músicas e cachaça com canela.

Eu cresci cercada de literatura, agora a literatura se confunde com minha vida. As voltas por Paraty confundem livro com passeio, pedra com brincadeira, dezoito anos com vinte. Dá vontade de falar: olha só, mãe, o bottom escrito “autor” que eu estou usando hoje. Olha só como meus amigos vão ficar na rua até as cinco da manhã pra me acompanhar até a rodoviária. Olha como a lua é bonita daqui, como nós vamos acordar a cidade de tanto falar alto porque tem algo em nossos corações mais alto que o mundo. Não é um livro, é um porta-retrato com todos os meus amigos dentro. Pra eu carregar no bolso, como sempre quis fazer.

Antes do sol nascer entro de volta no meu ônibus com destino ao Rio. Não durmo desde quarta-feira, mas quando encosto no ônibus, tenho que ser vencida pelo cansaço até fechar os olhos. Os sonhos que eu tinha se realizaram no meio da tarde, me acabando na sorveteria por quilo. Ou durante a noite assinando um livro que talvez um dia o Chico Buarque leia. Sonhar com o que, quando a realidade são todos os seus sonhos? Não quero dormir agora  – não quero que esse dia acabe. Mas me agarro ao pensamento que, ao menos, a festa não acabará nunca. Enquanto houver um livro pra ler e companhias pra escrever, vamos comemorar a vida de Paraty a qualquer outro lugar do mundo.

Por Agata Sousa, participando do lançamento do livro Clube da Leitura: Modo de Usar, Vol. 1, direto da FLIP 2009.

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