Resenha: "Parafilias", de Alexandre Marques Rodrigues

Abro o livro de Alexandre Marques Rodrigues, vencedor do Prêmio Sesc de Literatura 2014 na categoria Contos, e leio o primeiro trecho no intuito de averiguar a parafilia do livro inteiro. O que encontro, de cara, é a linguagem poética. Em Livros, o conto de abertura, uma mulher demanda a leitura de um livro ao seu amante: “Pedi que lesse. Ele riu, em vez disso. Riu e me olhou em diagonal, sério, como se os olhos e a boca não estivessem plantados na mesma cabeça; os lábios achavam graça e as pupilas se espantavam”. As parafilias – que significam “perversão, desvio sexual” – existem, perpassam o livro inteiro, e o erotismo é às vezes mais brando, outras vezes descarado, mas a poesia das imagens, das cenas, dos jogos relacionais, essa aparece sempre ladeando esses encontros desesperados, como um par em uma contradança. Há, em Parafilias, poesia e erotismo, poesia e solidão, além de sutil ironia, sobretudo quando os contos apontam para o questionamento de pensadores, filósofos ou teóricos, como Husserl e Freud.
Parafilias é um título que por si só já chama atenção, já instiga o leitor a tomar o livro nas mãos, esse livro de capa vermelha, e folheá-lo. Trata-se, portanto, de título curto, plural e instigante, assim como a maioria dos títulos dos 24 contos do livro. Um texto vai puxando o outro, como uma ciranda muito bem arranjada, que tem seu início preciso em Livros, e seu final muito bem acabado no conto que dá nome ao livro, no qual é possível ler: “Me desculpa dizer só no final, a mulher falou, mas não existem parafilias”, para mais adiante explicar: “Parafilias, perversões: isso é tudo besteira. Mais do que a inteligência, é a solidão o que melhor caracteriza o ser humano, essa sua incapacidade constante de compreender e de ser compreendido”.
Parece que os contos tratam mais de solidão do que de desvios sexuais, (des)encontros eróticos, desesperos construídos a dois, ou que as parafilias que costuram as histórias narradas são apenas um pretexto para a abordagem indireta dessa solidão tão inescapável. Essa talvez seja a pista enfim revelada no último conto, tal qual um romance policial, em que o autor desvela o assassino, o verdadeiro culpado de tudo, as razões que o levam a matar, ao final da obra. Pois então a solidão é a verdadeira culpada de toda a agonia que permeia as relações a dois, a três e a quatro que o livro de Alexandre Marques Rodrigues nos apresenta.
No conto Substantivos, por exemplo, a concretude da solidão e do desespero espantam tanto quanto o abstrato café. O personagem vai se dando conta de que substantivos sempre tidos como abstratos exercem toda a sua concretude à revelia de seu entendimento, de sua compreensão. “Precisava urgentemente de um dicionário (…), um livro de autoajuda gramatical, prático e eficaz, para fazer vazio, solidão, desespero e morte serem de novo substantivos abstratos, sem concretude e sem qualquer efeito físico e real”. De todos os substantivos abstratos que se tornam concretos e assolam o sujeito com seus efeitos altamente palpáveis, apenas o amor continuava abstrato.
O café, por sua vez, é um personagem importante nos contos de Parafilias, assim como os comprimidos de efedrina. No conto Palavras, surge como um sucedâneo pouco eficaz da inspiração: “Mas a inspiração não veio; eu escrevi as palavras que me vieram à cabeça e a inspiração não veio apenas o café (…)”. E doravante: “Tomo café, em vez de escrever; escrevo, em vez de trabalhar”.
Os contos de Parafilias, nessa estreia vencedora, contêm tristeza, solidão, desespero, erotismo, mas não só. É possível rir em muitos contos, espécies de esquetes tragicômicas da condição humana. No excelente Quartos, um camareiro de motel de quinta categoria intercala a limpeza dos quartos e o estranhamento que sente nessa função com a leitura de clássicos da literatura russa, essa que é a sua “desforra contra o mundo, contra a vida”. Em Pés de maconha e um filme sobre a volta de Cristo, uma troca de casais beira o absurdo em torno do orgasmo ou de sua ausência. Em Mentiras, a fila para consulta com o psiquiatra nos mostra a mitomania de um homem complementando a carência de uma mulher. Sem contar o belíssimo conto Léxico, em que através de certo glossário muito bem construído, crianças de janelas vizinhas (e indiscretas) observam diariamente a relação distanciada entre um homem e uma mulher.
Em Parafilias, “ninguém é dono do próprio corpo”, e haveria muito mais a ser dito do riquíssimo livro de Alexandre Marques Rodrigues, com publicação pela Editora Record. Fica, ao fim e ao cabo, a vontade de um segundo livro urgentemente.

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