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Sob o verso da delicadeza – Entrevista com Henrique Ludgério, autor de Mitologia dos Restos

Henrique Ludgério, nasceu em 1989, na cidade de Quissamã. Formado em cinema pela PUC-Rio, o autor lançou em 2011 o romance Caos de uma vida sem sonhos. Mitologia dos Restos é seu segundo romance, recentemente lançado pela editora Oito e meio.
Em ocasião do lançamento, entrevistei Henrique Ludgério para a revista Ambrosia, confira abaixo.
Fernando Andrade – Gostaria primeiramente saber como você descobriu esta voz singular de narrar numa ótica muito delicada e feminina? Partiu de alguma referência? Já emendando como pensou Catarina; como foi construindo a personagem?
Henrique Ludgério – Depois que terminei o primeiro livro, decidi que precisava praticar o texto como um exercício. Nessa época eu não estava satisfeito com a minha produção. Sentia que eu precisava de uma linguagem, achar um ritmo e um tom para o texto. Daí vieram algumas narrações e a ideia de fazer um livro que parecesse um inventário. Logo, percebi que a personagem era mulher. Nessa época eu já tinha escrito metade de um livro e Catarina era uma personagem secundária dele. Nesse processo de criar uma voz, uma vida relevante, achei justo roubá-la do outro romance. Lá, uma parte dela já tinha sido construída.
Ainda assim eu tinha muitas dúvidas. Eu ficava pensando o quanto parecia antiético um homem se apropriar de uma voz feminina, quando mulheres já podem se expressar com liberdade. Mas é que primeiro: eu não estou tão próximo do modelo de homem branco, eurocêntrico, heterossexual e rico. Que considero o opressor. E também, a personagem surgiu assim.
Então me voltei para as mulheres que sempre amei ler. Não, acredito em literatura feminina, literatura não tem gênero. Mesmo assim achei interessante ler e reler outras mulheres que tinham me inspirado como escritor. Então me voltei para Marguerite Duras, Clarice Lispector, Raquel de Queiroz e Susan Sontag. Assisti alguns filmes da Mia-Hansen Love e da Agnès Varda; escrevia ouvindo Pj Harvey, Violeta Parra e Cat Power; e li um texto importantíssimo da Virginia Woolf chamado “Um teto todo seu”. Nesse texto, publicado em 1929 após uma série de palestras dadas, ela fala sobre o empoderamento intelectual da mulher. Foi um texto importante, uma ação feminista no mundo literário.
Assim, se deu um universo povoado de ideias de diferentes mulheres, das radicais as mais sensíveis e preciosas. Universo esse, com o qual eu já tinha afinidade. E surgiu uma Catarina que era a imagem de tudo que eu admirava nelas.
FA – Você utiliza muito bem o tema do duplo na literatura. Mas o faz com uma leveza e uma sutileza, que tipo de acréscimo ou posse vocês fez deste tema para construir a relação da Isabel com a Catarina?
HL – O tema do duplo me fascina faz tempo. Todos aqueles filmes que eu cito no livro eu assisti através dessa ótica. Gosto da discussão sobre personalidade. De imaginar construções possíveis através de uma visão psicológica. Em todos os livros e filmes que exploram o assunto o duplo é uma faceta obscura da personalidade. Mas há algum tempo eu tenho rascunhado histórias e roteiros com esse tema. De tanto repetir o assunto, acabei chegando onde eu queria, num duplo diferente daqueles, um duplo possível, próximo. E que conseguisse – abarcar temas muito caros para a juventude e o mundo em que vivemos agora. Então eu analisava o facebook, ou o mundo da arte contemporânea ou relações de amizades próximas e percebia que mais do que nunca vivíamos num jogo de apropriação eloquente. Ideias sem dono. E uma falência da relevância da originalidade. Hoje em dia partimos do pressuposto de que nada é novo ou original. Então o duplo tinha que discutir apropriação e a questão da cópia. E claro, como se dá então a manutenção de uma identidade própria. E foi a partir daí que eu trouxe o tema para uma perspectiva afetiva, que eu exploro na relação entre Catarina e Isabel.
mitologia dos restos
FA – Há uma relação entre vida e arte, biografia e ficção no seu livro, como você pensou esta relação e como ela está transpassada nas personagens de Isabel e Catarina?
HL – Lembro de um livro do Paul Auster chamado “Noite do Oráculo”. É uma destas histórias metalinguísticas em que a literatura se comenta e mais, ele propõe um personagem que escreve um livro e que os fatos do livro se repetem na vida real desse escritor. Esse livro me abriu para o fato de que coincidências assim aconteciam o tempo todo. Lembro que logo após escrever sobre o inundamento do apartamento, uma torneira da minha cozinha estourou. E a sensação de desespero ao ver a água avançando pelos cômodos da casa, que eu tanto tentava criar um mês antes estava se repetindo. Essa foi a primeira percepção de um mundo que se repete e se cria ao mesmo tempo na ficção e na vida.
Essa é a justificativa de Isabel. Mas no livro o que mais se evidencia é a relação estreita entre vida e arte no mundo das artes plásticas. Laços que tem se tornado estreitos com a aceitação da performance. Há também uma proposta irônica de perceber que o mundo da performance e da arte é cheio de personas inventadas. Então acabo criando também personagens-narrativas, que se criam. E o livro se torna ao mesmo tempo registro e justificava para a existência deles. Criação performática. Manifestação súbita de um personagem que está lá dentro.
FA – A água é um elemento recorrente na narrativa, que tipo de conotação você quis dar ela para o temperamento de Catarina?
HL – Esse é um livro que se propõe a uma leitura romantizada dos tempos em que vivemos. A ansiedade, característica que define a personagem do começo ao fim da história – mal que assola grande parte da sociedade, só será entendida quando conseguirmos equilibrar o pensamento pragmático e racional com uma perspectiva mais espiritual e psicológica, humana.
Então há aquela liquidez dita por Bauman, que temo dizer, faz bastante sentido. E há minha vontade de fazer uma ode ao não-racionalismo, através de uma leitura mística, as vezes pouco sofisticada. Esses pensamentos me guiaram para um texto que tinha que flutuar de alguma maneira, assim todas as associações possíveis com a liquidez são exploradas nos insights da personagem e na maneira como se dá a escrita.
FA – Como as personagens percebem que a existência de uma dá a outra a margem de recriar a sua própria vida de maneira sublimada ou inventada?
Mas acho que os personagens perceberam que a arte é o que fica. Estão todos ali numa tentativa de sobrevivência, de permanência, como se houvesse um processo de imortalidade muito importante para aquela juventude que conseguia ser realizado através da arte. No livro esse processo se desdobra na questão do duplo e no embate entre um mundo natural e outro tecnológico. A descoberta de que as tecnologias conseguem nos repetir, registrar a voz, a imagem. A minha geração manipula essas tecnologias com muita facilidade, então penso que o caráter inventivo, a possibilidade de editar fotos, se servir de informações instiga uma visão controladora. Isabel pensa que pode assim controlar, corrigir, reinventar suas relações.

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