Dani Barros em interpretação contundente no belo monólogo Estamira - Beira do Mundo – Ambrosia

Dani Barros em interpretação contundente no belo monólogo Estamira – Beira do Mundo

“Sou ruim, mas não sou perversa”. Essa é uma das tantas frases cheias de verdade e força que o belo monólogo Estamira – Beira do Mundo, dirigido por Beatriz Sayad, que acaba de estrear no Teatro Poeira, nos oferece. É uma frase dita por Estamira, personagem real já eternizada no cinema e agora vivida por Dani Barros com uma intensidade que nos encharca de modo inescapável. Tudo começou quando Marcos Prado resolveu levar às telas de cinema a mulher cujo reinado era ali, no lixão de Gramacho, em Duque de Caxias. Ainda que o espetáculo seja livremente inspirado no filme, não é um desafio pequeno levar para o palco uma personagem tão marcante para aqueles que já o assistiram. Mas Dani Barros, que parece mesclar parcelas autobiográficas no monólogo (as quais não percebemos de imediato pela sutileza com que são inseridas no texto), tem êxito em construir a sua Estamira particular e contundente, com a mesma garra, humor e força que a Estamira real já vista nas telas de cinema.

Há uma outra frase no monólogo, também plena de força, que é: “sou perturbada, mas lúcida e consciente”. Não pode haver verdade maior nisso. Quem já conviveu com a loucura, quem já transitou pelas alamedas e enfermarias de um hospício, sabe o quanto de verdade existe nessa afirmação: o louco é aquele que, de dentro de sua perturbação tantas vezes atordoante, vê além, vê antes e vê dentro de você, como se tivesse o guia prático da leitura de pensamento. E o faz sempre de modo surpreendente. Carl G. Jung e a doutora Nise da Silveira talvez dissessem que isso nada mais é do que o “inconsciente a céu aberto do louco”, capaz de captar o que acontece nas entrelinhas do pensamento manifesto e compartilhado socialmente. Mas aquilo que capta não é tão simples e nem sempre a linguagem canônica para descrevê-lo é capaz de alcançar o objeto de sua descrição, logo é um pouco subvertendo sentidos e regras gramaticais que o louco poderá expressá-lo, tal como Estamira, ao falar do “trocadilho”, do “esperto ao contrário”, entre outras expressões singulares.

O louco, por sua vez, de tanta curiosidade que suscita, mas também medo, aversão e reflexo, tem suas definições sempre cambiantes conforme a época, sendo definido ora como errante, ora como ser desarrazoado, ora como doente, definição mais recente muito própria da cultura medicalizada em que vivemos na contemporaneidade. No caso de Estamira, se estivéssemos em outra cultura, talvez fosse definida como visionária.

O texto do espetáculo é excelente, por trazer essas e outras reflexões nada óbvias, além de oscilar, junto com o próprio humor de Estamira, entre momentos de sensibilidade tocante, humor gaiato e profunda (e justificada) revolta. Há trechos de autores como Michel Foucault, Ana Cristina Cesar, Antonin Artaud, a própria Estamira Gomes de Souza e outros

Há outro momento fundamental no espetáculo, em que a protagonista faz a denúncia do agir médico sem empatia e do poder médico que lhe é subjacente (sendo, este último, a própria condição de possibilidade do primeiro), ao despejar no centro do palco embalagens e mais embalagens de medicamentos que ela teve de tomar, e ao denunciar a frieza com que seu psiquiatra a atendeu no telefone quando ela precisou desesperadamente falar com ele. Os médicos são “copiadores” e ela grita, certeira: “Se um médico não tem paciência para lidar com pessoas, ele não pode tratar de pessoas!”. Esse é um princípio que precisa ser constantemente repetido, porque para muitos não é óbvio como deveria ser, e porque não é infrequente encontrarmos situações tais como essa que Estamira denuncia.

O cenário, assinado por Aurora de Campos em colaboração com Beatriz Sayad e Dani Barros, reproduz o lixão de Gramacho de maneira poética e singela. Diversos sacos plásticos estão dispostos sobre o palco, espalhados e amontoados, e dois ventiladores nas laterais, em momentos específicos da peça, fazem com que haja uma revoada deles, que se direcionam para a plateia. Para os que estão na primeira fila (esse foi o meu caso), o resultado é nada menos do que uma sensação indescritível, magnífica, embora suave, de ser engolfada pelos sacos plásticos, como se de algum modo estivéssemos sendo levemente puxados para o interior do mundo de Estamira. De fato, trata-se mesmo de uma revoada, que podemos encarar como uma tradução cenográfica de uma revoada mais interna, aquela que diz respeito às palavras e às ideias de Estamira, prolífica no que diz respeito aos pensamentos e às sensações, transbordando de vivências sensoriais que deve suportar (o “controle remoto” sendo apenas uma delas) e que tenta transmitir a nós, seus interlocutores.

Dani Barros está magnífica como Estamira, e o texto da peça traz denúncias importantes às quais não podemos fazer ouvidos surdos. Ao final, após os aplausos e os agradecimentos, houve a leitura de um pequeno texto de Dani em defesa da democracia. Ela diz que fazer democracia não é fácil, e quem gosta de comodismo é a ditadura. Ela lembra o golpe militar de 31 de março de 1964, não por coincidência o dia em que a peça estreou no Teatro Poeira. Para aqueles que têm uma queda absolutamente indisfarçável pela loucura, para os que se interessam pelas belezas do inconsciente, para os que concordam com o “comunismo superior” a que Estamira faz menção, e para os que viram o filme de Marcos Prado, esse é um espetáculo fundamental e enriquecedor.

FICHA TÉCNICA

Direção e dramaturgia: Beatriz Sayad
Atuação, dramaturgia e idealização: Dani Barros
Trechos de: Ana Cristina Cesar, Antonin Artaud, Estamira Gomes de Souza, Manoel de Barros, Michel Foucault e Nuno Ramos
Luz: Tomás Ribas
Cenário: Aurora dos Campos | Colaboração: Beatriz Sayad e Dani Barros
Figurino: Juliana Nicolay
Direção musical: Fabiano Krieger e Lucas Marcier
Design de som:  Andrea Zeni
Assistente de direção: Marina Provenzzano
Preparação de ator: Georgette Fadel
Preparação vocal: Luciana Oliveira (fonoaudióloga)
Voz do fado: Soraya Ravenle
Preparador vocal (Soraya): Felipe Abreu
Técnico, operador de luz e som, contrarregra: Sandro Lima
Técnico e operador de luz: Walece Furtado
Microfonista: Allan Moniz
Boneca: Getúlio Damado
Projeto gráfico: Cubículo
Edição de vídeo: Antonio Baines
Assistente de cenografia: Camila Cristina
Costureira: Cleide Moreira
Colaborou para esta criação: Ana Achcar
Direção de produção:  Verônica Prates
Produção: Quintal Produções
Gerente de projetos quintal: Maitê Medeiros
Assistente de Produção Quintal: Thiago Miyamoto
Coordenação geral do projeto: Dani Barros
Realização: Momoenddas Produções Artística

SERVIÇO

TEATRO POEIRA
São João Batista, 104 – Botafogo
Informações: (21) 2537-8053
Capacidade: 162 lugares
Duração: 1h15
TEMPORADA DE 31 DE MARÇO A 29 DE MAIO
QUINTA A SÁBADO, ÀS 21H | DOMINGOS, ÀS 19H
QUINTAS E SEXTAS: R$ 50 (inteira) | R$ 25 (meia)
SÁBADO E DOMINGOS: R$ 70 (inteira) | R$35 (meia)
Classificação indicativa: 12 anos

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