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Escritora paulistana Mariana Torres lança romance sobre maternidade real durante a Flip 2023

“Depois que a vida chegou” (Caravana Editorial) é o segundo livro da autora paulistana. Por meio de cartas ao primeiro filho, a protagonista destaca os desafios de uma mãe que assume diferentes papéis.

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“O plano da maternidade não parecia tão difícil, especialmente inserido  no seu contexto financeiro e na sua aparente estabilidade no casamento. Mas a natureza da dor é partir da humanidade, das fagulhas diárias,  e ser mãe pode fazer qualquer mulher se expor às mais diversas dores.”
Trecho de orelha da obra.

Uma mulher decide escrever e-mails ao primeiro filho, desde o seu nascimento, como presente de aniversário de 18 anos. Relatos de parto, primeiros dias de vida, celebrações e anotações cotidianas. Porém, pouco a pouco, o exercício de alteridade com a criança – outro corpo, mas tão dependente da mãe – se transforma em fragmentos de angústia e da necessidade em colocar a mulher no centro do universo contado. O romance epistolar “Depois que a vida chegou” (Caravana Editorial, 116 pág.), da paulistana Mariana Torres, narra as dores de uma mulher que passa a questionar seu lugar no mundo quando atravessada pela maternidade. 

O livro será lançado pela Caravana Editorial na Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), dia 25 de novembro, com sessão de autógrafos. Às 13h, a autora media a mesa “Como nasce um romance?”, sobre os diferentes processos criativos na construção de narrativas longas, com os autores Filipi Gradim, Gê Vitor, Hiran Roedel e Humberto Pereira. Os eventos acontecem na Casa Ópera, localizada na Rua Marechal Santos Dias, nº 25, antiga rua da Matriz, no Centro Histórico. A obra também será lançada em São Paulo, no dia 30, na Livraria Mandarina.

Mãe de dois filhos – o primeiro, para quem as cartas são destinadas, e o segundo, que nasce quando o mais velho ainda é um bebê –, a protagonista não nomeada desta história reconstrói os acontecimentos de uma família, questionando também seus papéis como mulher, esposa, mãe e filha. Em aparente conformidade com a rotina, ao longo das páginas as cartas transbordam desabafos sobre o cansaço materno, carga mental feminina e incompletude frente ao trabalho invisível. O tema vai ao encontro de discussões atuais, como a redação do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) deste ano, que propôs a discussão de “desafios para o enfrentamento da invisibilidade do trabalho de cuidado realizado pela mulher no Brasil”.

A obra apresenta diversas situações em que à personagem é exigida maior atenção ao cuidado, como a preparação de malas para uma viagem. Mesmo que o pai das crianças se prontificasse para a tarefa, a mãe é culpada pela falta das fraldas: “Sou a responsável final pelas tarefas domésticas. A chefe dessa empresa prestadora de serviços não remunerados”, diz trecho do livro. Principalmente no início dos relatos, há momentos sutis em que, no diálogo parental, as vontades do pai são mais acatadas e ouvidas, inclusive pela rede de apoio que os circunda, trazendo à mãe um sentimento de isolamento. Mas também, sobretudo, um deslocamento de si mesma. “Seu pai (…) trabalha duro a semana inteira para não pensar durante o fim de semana. Para apenas ser. O ser que há tanto deixei de ser”, a protagonista afirma, em outro trecho.

Durante a leitura, também é possível notar o deslocamento gradual do centro da narrativa: da criança para quem os relatos são dirigidos, o leitor volta o olhar para a mãe, fragilizada pelas relações construídas e desconstruídas pela maternidade. A autora define seu estilo de escrita como cru e objetivo e conta que o livro começou de maneira despretensiosa. “Todo dia escrevia um pouquinho no Word, entre os momentos de amamentação do meu segundo filho. Quando me dei conta, tinha escrito bastante. Enviei para meu irmão, que disse que tinha feito um livro. Foi chocante”, relembra Torres. A autora conta ainda que a obra passou por leitora crítica da escritora e editora do Selo Auroras, Dani Costa Russo, antes de seguir para a Caravana. “Depois de apenas 30 dias recebi a resposta de que tinha sido aprovada. Meu texto seguiu, então, para preparação com a editora”, comemora.

A depressão pós-parto e demais questões de saúde mental, como conversas na terapia e aproximações com a morte são temas trabalhados. A autora conta que parte do processo criativo surgiu durante uma oficina de escrita com a escritora Aline Bei, focada no desenvolvimento de projetos mais longos, como romances. “Em um de nossos encontros, desabafei sobre a minha incapacidade de criar um projeto. Falei sobre o fato de ninguém entender os meus sentimentos, nem mesmo meu marido e minha mãe”, conta. O grupo, incluindo a professora da oficina, a acolheu e a estimulou. “A Aline disse: ‘escreva sobre esse sentimento, você pode se fazer entender pelas palavras escritas’. Meu livro foi construído a partir desse exercício, de escrever esses trechos bagunçados”.

Vivendo em estado de angústia e ausência física e emocional, a protagonista de “Depois que a vida chegou” representa a experiência de muitas mulheres que, mesmo rodeadas por parentes e amigos, carecem de “um entorno com menos certezas e mais abraços”. Da mesma forma, fazem parte da história diálogos sobre a finitude, nas lembranças de momentos com o filho. “Queria poder te dizer já naquela hora que dá pra ter ausência enquanto se respira. Ausência de si. Do outro. E que a morte pode não ser tão ruim assim. Bonita até?”, aponta um dos trechos do romance. 

A personagem repensa a maternidade a partir da infância, com uma tentativa de esmiuçar a própria criação. Assim, relembra a relação com a mãe – que seria “inerente” capacitada para a tarefa do cuidado e, portanto, responsável por todas as funções – e o pai que, como afirma a personagem, aparece como “um enfeite pontual, a prova de que se abster é garantia de plenitude, de parentalidade sem crise, de amor jamais contestado”. Outra característica do romance é a consciência de privilégios sociais vividos pela protagonista. Além de gênero, apontamentos sobre classe e raça fazem parte da história, como quando a protagonista a princípio resiste à contratação de profissionais e depois assinala as diferenças entre ela e a funcionária que passa a trabalhar em sua casa. “Quando acordava do meu pouco descanso, ela já estava na porta. Tive vergonha. Raiva dos outros e de mim”.

Inspirada por Elena Ferrante, Carla Madeira e Aline Bei, escritora aposta em liberdade criativa e conexão com o presente

Mariana Torres conta que lia muitos autores homens até descobrir a italiana Elena Ferrante, autora de muitos romances traduzidos no Brasil. “Quando entrei em contato com a sua obra me senti representada como mulher pela primeira vez. Ela abriu a porta para que eu me jogasse nos livros das escritoras, algo raríssimo para mim. Posso citar ainda Carla Madeira, que me encanta demais e, claro, Aline Bei, meu farol”, assume.

O retorno à leitura aconteceu numa época em que a escritora se encontrava perdida profissionalmente. “Havia acabado de fechar uma empresa e minha analista sugeriu que resgatasse coisas do meu passado, as quais gostava de fazer. Voltei a ler mais intensamente, pois enquanto era advogada e administradora não conseguia me dedicar à leitura de livros literários”, aponta. Embora escrevesse quando mais nova, a autora explica que passou muito tempo sem se expressar pela escrita. “Voltei a fazer essa atividade durante o puerpério do meu primeiro filho, que coincidiu com o isolamento da pandemia”, destaca. 

Atualmente, Torres ressalta que seu processo criativo envolve relaxamento e, ao mesmo tempo, conexão ao momento presente, com a ajuda de alguns rituais. “Tenho meu canto em casa e gosto de acender velas e rodeá-lo de objetos que têm significado para mim, como souvenirs, pedras que coleciono desde criança e até brinquedos de infância”, conta. Porém, em situações corriqueiras, como reunião da escola dos filhos, as palavras podem surgir. ”É quase como se estivesse vomitando um texto que já estava pronto dentro de mim, brigando para sair”, resume.

No momento, trabalha em textos que podem se tornar outro livro, sobre a relação entre mãe e filha, além de contos. “Quando escrevo algo novo, não sei ainda o que será e qual será o fim, a evolução dos personagens. Já tentei fazer isso e não deu certo, ficou artificial”, explica. Porém, ela conta que, ao escrever uma história longa, procura revisitá-la todos os dias, nem que seja para escrever uma palavra. “Caso contrário, perco o tom. Se volto depois de dois dias, sinto-me uma estranha dentro das minhas próprias palavras”, indica.

Foi só depois de trabalhar como advogada e empreendedora que Mariana Torres encontrou nas palavras sua paixão. “Eu me descobri escritora em meio a uma pandemia e a um puerpério. Entre uma mamada e outra, escrevi uma história pela primeira vez, que seria minha estreia: o livro ‘Clube do Abacate’”, conta. Durante o puerpério da segunda gravidez, escreveu seu segundo romance, “Depois que a vida chegou”. Mariana mora em São Paulo (SP) e passa os seus dias criando histórias, além de dois meninos e dois gatos.

Confira um trecho de “Depois que a vida chegou”

“Não tive uma conexão imediata com você. Sempre refleti a respeito da horrenda
possibilidade de não gostar do próprio filho, ao que soava ser impossível. Mães
nasceram com a característica inerente de amar incondicionalmente sua prole. Já logo se observa no mundo dos animais selvagens. Com seres humanos então, nem se fale. Deve-se amar o pequeno ser desde a barriga. Nunca manifestei opinião contrária, assim como me calava quando diziam que a generosidade estava estampada em meus cromossomos XX. Não era tão boa assim em dar sem receber. A barriga um dia surgiu e, com ela, uma leve indisposição. Crescia, juntamente com um certo desconforto da lombar e mais nada. Sem grandes comoções. Vez ou outra, algo se mexia dentro de mim, não muito diferente dos movimentos de desarranjo intestinal. Você nasceu”.

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