O uso do estupro como arma na guerra da Bósnia (1992-1995) – quando entre 20 mil e 44 mil mulheres foram sistematicamente violentadas pelas forças sérvias – é o ponto de partida de A mulher como campo de batalha, do autor romeno Matéi Visniec. O texto ganhou uma nova montagem dirigida por Rodrigo Spina e protagonizada por Rita Gullo e Carla Kinzo que estreia no dia 13 de outubro no Sesc Belenzinho, onde segue em cartaz até 12 de novembro.
Spina conta que entrou em contato com a obra em 2015, quando montou Aqui Estamos com Milhares de Cães Vindos do Mar (Prêmio APCA de melhor espetáculo), texto também de Visniéc. “Na época, resolvi ler a obra inteira dele que tinha sido publicada recentemente pela editora É Realizações. Esse texto ficou habitando meu imaginário por muito tempo até que surgiu esta oportunidade de dirigir a Carla Kinzo e a Rita Gullo depois que o projeto foi contemplado pelo ProAC”, revela.
A peça marca o encontro entre Dorra, que sofreu abuso sexual por cinco homens durante a guerra da Bósnia, e Kate, uma terapeuta norte-americana que tenta ajudar a primeira mulher. Ao longo dos diálogos, a relação entre terapeuta e paciente vai sendo invertida e o público acompanha a transformação das duas.
A encenação, ainda de acordo com o diretor, aposta em um cenário minimalista concebido por Carmela Rocha, composto por uma cadeira, uma câmera transmitindo ao vivo em um telão ao fundo as reações do olhar de Dorra e uma redoma que sobe e desce, onde são projetadas imagens de um plano mais onírico e das memórias de Dorra – concebidas pela cineasta Vera Egito e o artista Kvpa.
“Quando ainda estávamos fazendo as primeiras leituras da peça, percebi que o destaque maior da encenação está na atuação das duas atrizes, na relação construída das personagens, em seus silêncios, suas reações. Durante as leituras do texto, o olhar da Rita, que interpreta a mulher que sofreu os abusos sexuais, sempre estava atordoado, inerte e eu tive a ideia de revelar e dar um grande zoom nesse não-olhar misterioso e cheio de dor. Por isso, apostamos nesse olho gigante que sempre mostra a reação às provocações da terapeuta, transmitido ao vivo. Como a Dorra está de costas para o público e a Kate chega quase como uma voz apenas, brincamos também com essa situação da terapia no divã”, comenta o diretor.
Embora trate de um episódio que aconteceu há 30 anos na Bósnia, o texto dialoga bastante com o nosso contexto brasileiro, segundo Spina. “Por mais que estejamos falando do Leste Europeu, é impressionante como conseguimos reconhecer na obra uma situação terrível de violência parecida com o que vivemos no estabelecimento do nosso sistema colonial e que se repete até hoje. Dialoga também com o aumento nos casos de feminicídio nos últimos anos e com o estupro de indígenas Yanomami por garimpeiros como uma forma de guerra étnica, entre outros tantos casos aqui mesmo no Brasil”, reflete o encenador.
“A guerra é uma coisa muito masculina. Falamos sempre de exércitos vencedores, soldados que morreram no conflito e nunca pensamos na perspectiva das mulheres que são violentadas, que engravidam por conta desses estupros. Enfim, acho que conseguimos tirar um pouco o regionalismo específico da guerra da Bósnia para discutir questões um pouco mais universais enfrentadas pelas mulheres de diversas culturas e classes sociais, como a questão da violência sexual, do aborto, do que é esperado do comportamento feminino em relação à gravidez, de saúde feminina. Mas objetivamos fazer isso tudo isso de forma muito delicada, focando na relação dessas duas mulheres e suas dores”, acrescenta.
Texto do dramaturgo Matéi Visniec especial para esta montagem brasileira
O mundo como campo de batalha
O cenário histórico da minha peça é a guerra na Bósnia que terminou, entre 1992 e 1996, no coração da Europa, com cem mil mortes e muitas atrocidades. Mas hoje a minha peça é, infelizmente, “atual” novamente por causa da guerra na Ucrânia. No texto falo, aliás, da barbárie em geral, uma barbárie que regressa como um cometa envenenado cada vez que uma nova guerra irrompe no planeta, cada vez que os humanos voltam a matar-se uns aos outros cegamente. É com enorme desilusão que todos vemos que a humanidade não aprende muito com os erros do passado.
Falo também, na peça, de algo que afeta toda a humanidade há muito tempo: a loucura nacionalista, a intolerância, uma certa forma de terrorismo comportamental que os homens continuam a praticar contra as mulheres. A peça também denuncia a velha e vergonhosa “estratégia militar” do combatente que quer desferir o golpe fatal no seu adversário violando a sua esposa (ou a sua filha, a sua irmã e a sua mãe).
Como escritor, coloco-me algumas questões que, infelizmente, permanecem muito atuais: Qual é o mecanismo que transforma pessoas normais em monstros? Como pode a barbárie manifestar-se repetidamente, no coração da Europa, num espaço que pensávamos ser “civilizado”? Como pode a propaganda de “gurus” que afirmam conhecer todas as verdades ainda fazer lavagem cerebral em centenas de milhares de pessoas?
Não por acaso as personagens da minha peça são duas mulheres. Quero prestar homenagem às mulheres em geral, à mulher que sempre foi uma portadora de esperança cada vez que a humanidade volta a cair nas trevas. As mulheres são também as primeiras vítimas de todas as guerras… Nas últimas décadas temos assistido à repetição de “práticas bélicas” que têm as mulheres como alvo principal, reproduzindo-se na Síria, no Iraque e em muitos países africanos marcados por conflitos (Ruanda, Sudão, República Democrática do Congo, Mali, República Centro-Africana, Nigéria).
Sempre acreditei que o teatro pode conscientizar e desencadear debates importantes. É por isso que escrevo. A força do teatro reside nessa dimensão social: partilhar um momento de verdade e um momento de emoção, mas também assumir responsabilidades, envolver-se num debate.
Obrigado mais uma vez aos diretores que, no Brasil, consideram que essa peça tem uma dimensão universal e que merece ser encenada repetidas vezes.
Ficha Técnica
Direção Artística – Rodrigo Spina
Assistencia de Direção – Samantha Rossetti
Dramaturgia – Matéi Visniec
Elenco – Rita Gullo e Carla Kinzo
Direção de Arte – Carmela Rocha
Assistência de Direção de Arte – Sofia Gava e Gabryella Roque
Iluminação – Lui Seixas e Rodrigo Spina
Trilha Sonora – Cadu Tenório
Direção Audiovisual – Vera Egito e Kvpa
Vídeo Mapping e operação de Vídeo – Ivan Soares
Identidade Visual – Alexandre Caetano
Mídias Sociais – Lucas Horita
Assessoria de Imprensa – Pombo Correio
Fotógrafo – Gabriel Góes
Cenotecnia – Isaac Tiburcio
Operação de Luz -Matheus Ramos
Operador de Som – Lucas Fernandes
Voz Off – Wallyson Mota
Intérprete de Libras – Fabiano Campos
Produção Executiva – Marcelo Leão
Direção de Produção – Anayan Moretto
Serviço
Espetáculo: A Mulher como Campo de Batalha
Direção: Rodrigo Spina
Temporada: 13 de outubro a 12 de novembro 2023
Horários: sexta e sábado, às 21h30, e domingo, às 18h30
Local: Sala I (120 lugares) – com acessibilidade.
Ingressos: R$ 30,00 (inteira), R$ 15,00 (meia-entrada) e R$ 10,00 (credencial Sesc)
Duração: 70 minutos.
Classificação: 16 anos.
27 e 28 de outubro: apresentação em Libras
Sesc Belenzinho
Rua Padre Adelino, 1000. Belenzinho – São Paulo / SP.
Telefone: (11) 2076-9700 | sescsp.org.br/Belenzinho.
Na rede: @sescbelenzinho.
Estacionamento
De terça a sábado, das 9h às 21h. Domingos e feriados, das 9h às 18h.
Valores: Credenciados plenos do Sesc: R$ 5,50 a primeira hora e R$ 2,00 por hora adicional. Não credenciados no Sesc: R$ 12,00 a primeira hora e R$ 3,00 por hora adicional.
Transporte Público
Metrô Belém (550m) | Estação Tatuapé (1400m)
Sobre Matéi Visniec
Muito encenado no Brasil, o celebrado autor e jornalista Matéi Visniec nasceu na Romênia em 1956 e vivenciou em seu país a ditadura Nicolae Ceaușescu (1918-1989). Ainda jovem, muda-se para a capital Bucareste para estudar filosofia. Acreditava que o teatro e a poesia podiam denunciar a manipulação do povo por meio das grandes ideologias.
Em 1987, é reconhecido em seu país-natal por sua poesia depurada, lúcida, ácida, mas ainda proibida para o palco. Aos 31 anos, muda-se para a França e, em apenas três anos, começa a escrever em francês e converte a sua limitação na língua em elemento criativo. Desde então, escreve poesia e romance em romeno, mas teatro, sempre em francês.
Em suas peças, Visniec é bastante influenciado pelo surrealismo e pelo teatro do absurdo. Seus textos geralmente exploram um humor ácido e silêncios. É autor de mais de 30 peças, como “A Máquina Tchékhov”, “A História do Comunismo Contada aos Doentes Mentais”, “O Espectador Condenado à Morte”, “Ricardo III Está Cancelada – Ou Cenas da Vida de Meierhold”, “O Último Godot” e “Por Que Hécuba”.
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