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O discreto silêncio das cores

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A exposição organizada por Tatiana Guinle e Marcelo Carrera lida de várias formas diferentes com as imagens analógicas quando tornam-se envelhecidas e descontextualizadas do núcleo afetivo que as gerou em suas origens.

As imagens exibidas foram inicialmente parte de um acervo pessoal de família e, mais tarde, coletadas por eles em feiras de antiguidade. Muitas delas desbotadas, essas imagens vão ganhando marcas de sujeira, aderindo à gordura dos dedos que as manusearam por anos e pelos espaços guardados que as mantiveram claustrofóbicas em gavetas e caixas. Um dos efeitos inscritos pela passagem do tempo é a intensificação de uma das tonalidades das cores, geradas pelo desbotamento das outras matizes, gerando assim um véu colorido, aquilo que na era digital pode ser comparado aos filtros de Instagram.

As intervenções feitas na exibição passam por diversas abordagens. O recorte é a primeira delas. Assim que entramos, vemos uma parede de fotografias ampliadas penduradas aleatoriamente, todas com um buraco na forma de um quadrado de mesmas dimensões, e na horizontal, todos os quadrados que foram retirados formam uma linha. Esse corte provoca um reenquadramento da imagem e traz novas leituras da mesma.

Nas outras paredes, temos a ampliação de 3 fotos com forte caráter cinematográfico, cada uma demonstrando de uma maneira diferente os efeitos do tempo impressos em suas peles.

Na segunda sala, há três grandes painéis, feitos da junção de várias destas fotografias coletadas, ampliadas do mesmo tamanho. Cada painel tem a predominância de uma das cores primárias, magenta, ciano e amarelo. Assim, de perto, podemos examinar as fotografias uma por uma, e de longe, observamos os corpos e as paisagens construindo um mosaico de cor.

As fotos ali exibidas vieram de fontes variadas. Algumas eram ampliações, outras negativos e outras eram slides, filmes diapositivos que possuem em si a transparência imediata da foto como a conhecemos, para que possa ser projetada através da luz. Em algumas versões do mesmo experimento, Tatiana e Marcelo sobrepuseram alguns destes slides, às vezes em duplas, criando uma terceira imagem estranha e, outras, num acúmulo vertical que gerou o que eles chamaram de “Sedimento”, nome usado pela geologia para falar do “depósito produzido pela precipitação de matérias dissolvidas ou suspensas num líquido”, gerando camadas de leitura graduais ou simplesmente levando à impossibilidade de visualizá-las, pelo escurecimento natural que se dá. Sedimentos são uma das maneiras através das quais os fósseis, restos de animais ou outros organismos, são armazenados na terra ou nas rochas. Isso pode parecer uma digressão geológica, mas na verdade faz todo sentido se considerarmos que fotografias, sobretudo as analógicas, são imagens que entraram em contato direto com um determinado objeto, que foram sensibilizadas por uma luz que só existiu naquele momento e naquele lugar. De certa forma, então, estas fotografias são fósseis de momentos históricos, restos de um evento que se deu no tempo e que agora servem de matéria, de acúmulo de cores e formas sem destino certo.

Dialogando com a experiência da exposição, temos o trabalho do artista John Hilliard, que desde sua aparição, nos anos 60, utiliza a fotografia a partir das especificidades de seu dispositivo e dos questionamentos em torno da representação e da linguagem fotográfica. Em um de seus trabalhos recentes, “Profiles”, ele sobrepõe a imagem no ato de fotografá-la quatro vezes, ou seja, sensibiliza o mesmo frame do negativo em quatro momentos diferentes de um mesmo lugar, às vezes, mantendo o objeto na posição central, mas se reposicionando ao redor do ambiente, gerando assim uma imagem esquizofrênica, fantasmagórica, incerta.

Tatiana e Marcelo estão trazendo à tona imagens perdidas, imagens devaneio, que podem ser reinterpretadas por qualquer pessoa que olhá-las, reafirmando assim, mais uma vez, que a fotografia nunca está atrelada ao seu conteúdo motivador, ela é código livre, mãe de várias temporalidades. Não há resposta certa, apenas o enigma, como se ao olhássemos para ela, estivéssemos diante de um oráculo que diz “Decifra-me”.

O final do texto do curador da mostra, Eder Chiodetto, resume bem a intenção do que nos é exposto: “A obsessão em criar memórias perenes pode, na verdade, resultar na edificação de imensos monumentos à amnésia”. Ele coloca aqui duas duplas de contradição juntas, criando um sistema de espelhamento e confronto. Memória e perene é a primeira, que une algo que pretende ficar, que se quer estável e algo que é breve, fugaz. Monumento e amnésia é a segunda, onde mais uma vez a palavra indicadora de durabilidade, triunfo da memória encontra o esquecimento e a inevitabilidade da perda.

Exposição CCJF – Cinelândia, Rio de Janeiro

De 15/04 a 31/05
Terça a domingo
12h às 19h
Galerias do 1º andar

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