Um panorama da importante e consistente obra da artista Wilma Martins (Belo Horizonte, 1934 – Rio de Janeiro, 2022) será apresentado a partir do dia 28 de junho no Paço Imperial, na exposição “Wilma Martins – Território da memória”, a primeira mostra póstuma da artista falecida no ano passado, aos 88 anos. Com curadoria de Frederico Morais, crítico de arte e marido da artista, e a historiadora da arte Stefania Paiva, que conviveu intensamente com Wilma nos seus últimos anos de vida, a mostra será composta por 37 obras, além de estudos, em um conjunto nunca antes reunido, incluindo trabalhos pouco conhecidos da artista, desde suas primeiras produções até a última. São gravuras, pinturas, desenhos e cadernos, que mostram a potência e as diversas facetas da obra de Wilma Martins.
“Contemplar sua obra é olhar para dentro da artista. E Wilma nos transporta para outros domínios, para impensáveis cenas, dessas que só aparecem nos delirantes sonhos. A seu modo, construiu um mundo com a riqueza do mistério, capaz de cativar até mesmo o mais desatento espectador. Sua delicada força está em tudo o que ela criou”, afirma Stefania Paiva, que assina a curadoria da exposição ao lado de Frederico Morais.
A exposição apresentará desde os primeiros trabalhos da artista – pequenas gravuras da década de 1960 –, passando por xilogravuras maiores, pinturas e desenhos, chegando até a última obra feita por ela – “Dona Marta 24h” (2016), composta por 25 desenhos, que representam o Mirante Dona Marta, no Rio de Janeiro, em cada hora do dia e da noite, durante um período de 24 horas.
XILOGRAVURAS
No início dos anos 1960, Wilma Martins produziu gravuras em preto e branco, em pequenos formatos, que apresentam, sobretudo, um exercício de observação da fauna e da flora. Após esse período inicial, Wilma passa a elaborar gravuras em grandes formatos, com formas orgânicas e geométricas, criando cenas místicas, alegóricas, compostas de núcleos onde seres se misturam entre si. “Os temas que Wilma aborda em suas gravuras são aqueles que falam da condição feminina – fecundação, gravidez etc. Mas esses temas aparecem estranhamente mesclados com outros – frequentes na arte medieval, que é sempre religiosa. No entanto, ela não foi buscar essa iconografia nos vitrais coloridos, mas nos psautiers nos quais encontrou toda forma de arcaísmos, anacronismos, de capitulares e iniciais zoomórficas, assim como enorme variedade de tramas gráficas, formas cilíndricas, ovóides etc”, diz Frederico Morais.
Entre as xilogravuras apresentadas na exposição está o tríptico “O encontro” (1971), “a maior e a mais despojada e impactante xilogravura realizada por Wilma Martins”, segundo Frederico Morais. “É uma releitura do painel central do políptico Adoração do Cordeiro Místico. Uma magistral redução minimalista da obra do pintor flamengo. Wilma começou eliminando o cordeiro (a redenção), mantendo apenas o vermelho do altar, que de retangular se transformou em semicírculo. Na gravura de Wilma, as figuras femininas, escavadas no branco, corresponderiam às “anjas” que circundavam o altar. Agora, bem juntas, buscam ascender até o semicírculo vermelho. As figuras masculinas, negras, em conjuntos simetricamente agrupados, corresponderiam aos dois grupos humanos que aparecem, como que imobilizados, em primeiro plano na pintura de van Eyck – prelados com suas vestes vermelhas à direita, os demais representantes da sociedade civil à esquerda. Ambos se movimentam em direção à pirâmide de mulheres, para expulsá-las dali ou, ao contrário, para nelas se fundirem e juntos ascenderem. Desvestidos por Wilma, homens e mulheres, brancos e negros, anjos e humanos todos se igualam em sua humanidade. Ou não”, ressalta Frederico Morais.
PINTURAS E DESENHOS
Também fará parte da exposição um pequeno núcleo com a produção mais conhecida de pinturas e desenhos de Wilma Martins, incluindo a última obra produzida por ela, “Dona Marta 24h”, um conjunto composto por 25 obras. “Os trabalhos se diferem entre si pela luz que incide nas primeiras horas do dia, a sombra do entardecer ou o cair da noite. O vigésimo quinto desenho que compõe a instalação trata-se da mesma montanha em forma de quebra-cabeça (hobby de Wilma, assim como as palavras-cruzadas e os enigmas), onde cada peça representa uma hora dentre as 24h”, conta Stefania.
Além disso, será apresentado um caderno de bolso, cujas páginas trazem desenhos com paisagens do Rio de Janeiro, acompanhado por um bilhete escrito pela artista com instruções de uso. “Cabe destacar especialmente a série de desenhos focalizando o maciço da Dona Marta e o pequeno caderno de papel artesanal, (11,5×8,5 cm), registrando à maneira dos cicloramas do século XIX, no Rio e Janeiro, toda a extensão da paisagem captada de sua varanda: Urca, Pão de Açúcar, Botafogo, Laranjeiras, Silvestre, altos de Santa Teresa, Cristo Redentor”, ressalta Frederico Morais.
Completam a exposição três obras realizadas no início da década de 1980: “Santa Teresa I”, “Santa Teresa II” e “Santa Teresa com elefantes”. São pinturas criadas a partir da janela do ateliê/casa de Wilma, no bairro do Cosme Velho, no Rio de Janeiro. “Da parte mais baixa da cidade, ela pintou uma Santa Teresa suspensa, envolta em árvores e montanhas de cumes verdes. Pouco tempo depois, Wilma foi até o bairro de Santa Teresa, comprou o terreno que pintou tantas vezes, e ali ajudou a projetar a casa que tem uma varanda com vista para o ponto de onde ela olhava inicialmente. Esse deslocamento do ponto de origem criou uma conexão invisível, como um rebatimento da paisagem minuciosamente descrita por ela”, conta a curadora Stefania Paiva. “É a paisagem invadindo a casa, o que não se trata de uma liberdade poética, mas uma sensação real, pois em certas horas do dia, dependendo da luminosidade, essa paisagem se projeta através da porta de vidro dentro da casa, como se desejasse completar a forma circular do ciclorama. Inversamente, a biblioteca projeta-se na paisagem, nos fins de tarde, misturando-se com as árvores. Dupla leitura: livros e árvores”, explica Frederico Morais.
SOBRE A ARTISTA
Wilma Martins Morais (Belo Horizonte, 1934 – Rio de Janeiro, 2022). Pintora, gravadora, desenhista, ilustradora, figurinista e diagramadora. Inicia seus estudos artísticos em 1953, em Belo Horizonte, tendo como professores os artistas Alberto da Veiga Guignard (1896-1962), Franz Weissmann (1911-2005) e Misabel Pedrosa (1927). A primeira individual ocorre em 1960, na Biblioteca Thomas Jefferson do Instituto Cultural Brasil-Estados Unidos, em Belo Horizonte. Quando se muda para o Rio de Janeiro, em 1966, começa a trabalhar como diagramadora em revistas, e, à noite, dedica-se à xilogravura. No ano seguinte, expõe na Galeria Goeldi. Faz parte da Bienal Internacional de São Paulo em 1967, quando recebe o Prêmio Itamaraty pelo trabalho, e em 2016. Participa do Panorama de Arte Atual Brasileira do Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM/SP) em diferentes anos (1971, 1974, 1976), tendo recebido, na última, o Prêmio Museu de Arte Moderna de São Paulo, na categoria pintura pela obra Cotidiano XVI, em que dois elefantes surgem em cena doméstica.
SOBRE OS CURADORES
Frederico Morais (Belo Horizonte, 1934) é um dos principais nomes da crítica de arte do país, com 67 anos de atuação no Brasil e na América Latina. Produziu mais de 4.500 textos e análises criticas para jornais, revistas e catálogos. Publicou 41 livros no Brasil, México e Colômbia, além de ensaios e artigos em livros, revistas e catálogos em 20 países da América Latina, Europa, Austrália, Estados Unidos. É coautor de 35 livros e 51 catálogos e redator de textos de apresentação para 200 catálogos de exposições. Produziu, ainda, 29 obras audiovisuais, de 1969 a 1981, sendo considerado pioneiro do audiovisual no Brasil. Dirigiu e coordenou quatro instituições de arte, entre elas, o MAM Rio (1967 – 1973) e a EAV Parque Lage (1986 – 1989). Foi também diretor e coordenador de exposições da Galeria de Artes Banerj, de 1984 a 1986. Realizou cerca de 70 exposições e eventos artísticos, atuando como curador. Foi responsável pela concepção e realização da I Bienal de Artes Visuais do Mercosul, em 1997, em Porto Alegre. Em 1989, publicou o Panorama das Artes Plásticas do Século XIX e XX, reeditado em 1991. Escreveu diariamente para a coluna “Artes Plásticas”, do Jornal O Globo, durante mais de dez anos.
Stefania Paiva (vive e trabalha no Rio de Janeiro). Pesquisadora, curadora e editora de arte. Desde 2018 atua como studio manager do ateliê Cildo Meireles. Coordena o arquivo do crítico de arte Frederico Morais desde 2015, onde produziu, editou e coordenou diversos projetos voltados à produção do crítico, assim como editou os últimos três livros sobre a artista Wilma Martins. Integra o núcleo de especialistas em exposições da Casa Firjan desde 2023. Foi coordenadora editorial da Francisco Alves Editora e da Barléu. Coordena e administra a produtora e editora Tamanduá desde 2014. Formada em jornalismo, cursou o Programa Aprofundamento: Criação Artística no Parque Lage (EAV, 2010). É mestre em Acervo e Memória pela Fundação Casa de Rui Barbosa (2019), doutoranda em História da Arte pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ. Autora do livro Frederico Morais e Cildo Meireles – Sobre arte e crítica.
Serviço: “Wilma Martins – Território da memória” no Paço Imperial
Abertura: 28 de junho de 2023, das 16h às 19h
Exposição: até 20 de agosto de 2023
Paço Imperial
Praça XV de Novembro, 48 – Centro – Rio de Janeiro – RJ
Terça a domingo, das 12h às 18h.
Entrada gratuita
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