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A aspereza da dor em Orelha Lavada, Infância Roubada de Sandra Godinho

‘Orelha lavada, infância roubada’ (Oito e Meio/2018) está longe de ser um livro fácil. Talvez por isso eu o tenha deixado me dizer o tempo certo em que deveria ser lido. Sim, livros conversam conosco. Nos dizem se querem – e quando querem – ser folheados, lidos, ou abandonados entre tantas tarefas do cotidiano.

A obra da professora universitária Sandra Godinho é forte, começa com um garoto de oito anos levado ao presídio pelos pais para ser sodomizado por um detento. Algo indigesto, como toda boa literatura deve ser ao deixar memórias em seus leitores. Infelizmente a cena narrada não é muito diferente do que ainda ocorre nos grotões do Brasil.  Como não é incomum o destino de Marcelino, o garoto currado em uma cela suja. Transformado pela dor, torna-se algoz de outros e reproduz em crimes os horrores que viveu.
Em Marcelino, vingança é redenção. Mantivesse a força e a cadência do primeiro ato, estaríamos diante de um dos melhores livros do último ano. Infelizmente certos fatores tiram a pujança da narrativa: algumas passagens causam um pouco de confusão quanto ao tecido temporal do texto. Marcelino foi entregue ao estupro pelo pai ou pelo padrasto? Passou a viver no crime após fugir do Conselho Tutelar ou fugiu da vida em família após as sevícias a que foi submetido? Fugiu para as ruas aos 15 ou 13 anos? São pequenos pontos que não comprometem a fluidez da prosa mas provocam um revirar páginas ao leitor para confirmar ou descartar dados.
Híbrido de romance e conto, a temática tratada em ‘Orelha lavada, infância roubada’ é a mesma que Jorge Amado eternizou em ‘Capitães da Areia’, inclusive com a composição do grupo de amigos do protagonista. Sandra, escorrega, porém, na imprecisão ao construir o espectro que envolve Marcelino, sem a feitura adequada dos personagens ao mergulhar em suas desgraças e amadurecê-las antes do emergir em novos eventos.
Não há felicidade em ‘Orelha lavada’, nem deveria existir. Seus personagens são vítimas de uma violência fria e corriqueira, do descaso de famílias desajustadas, da estupidez e de toda forma de preconceito. Sandra é cirúrgica nesse aspecto. Literatura não é para ser necessariamente feliz, histórias não têm que terminar em alegrias e juras de amor. Poderia, porém, ter explorado a maturação da dor, dado cores e cheiros à mistura de sentimentos, à raiva, até fazê-la explodir na face do leitor. Pouca profundidade foi reservada aos antagonistas. Padecem de ódio, de movimento e de amargor suficiente para dar dinâmica ao livro.

Sandra Godinho (divulgação)
Os melhores trechos apresentam nuances de jornalismo literário incrementado pela excelente edição da casa carioca Oito e Meio, em contrapartida, a narrativa perde-se em clichês quando descreve a corrupção do sistema prisional brasileiro, a fragmentação do ambiente familiar ou quando envereda pela militância: “o Programa de Proteção a Crianças e Adolescentes não apaga a dor e o trauma que cada criança traz”, “o Programa de Proteção a Crianças e Adolescentes é uma espécie de prisão”. O leitor pode tirar suas próprias conclusões, não ser guiado pelas mãos aos princípios definidos pela autora.
Outro ponto: a autora dá voz a todos os personagens. E todos têm a mesma tonalidade, a mesma cadência. Não há variação de forma, ritmo ou estrutura. Entende-se serem frutos da mesma violência, mas as marcas devem ter profundidades e sotaques diferentes.
É um bom livro, poderia ser melhor. A autora tem a bagagem suficiente e qualidade para tanto. Sua obra, deve ser lida. Tem importância e temos necessidade de debater os temas levantados por ela.

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