Em "Providence", Alan Moore amplia o medo lovecraftiano – Ambrosia

Em “Providence”, Alan Moore amplia o medo lovecraftiano

A relação que o mestre Alan Moore tem com a editora independente Avatar Press não é tão recente. Para o selo de séries como Crossed, Über Invasion e Cinema Purgatorio, todas inéditas no Brasil, utilizar histórias idealizadas por Moore e adaptando-as é algo comum. Como foi com The Courtyard, escrita por ele em 1994, mas adaptada por Antony Johnston em 2003 numa minissérie ilustrada por Jacen Burrows. Era protagonizada por um agente de policia, Aldo Sax, que investiga assassinatos que o levam a um submundo de um culto aos mitos de Cthulhu, lembrando a criação do escritor H.P. Lovecraft. Uma homenagem ao famoso escritor de Providence e a seu microcosmos literário, que Moore sente uma especial predileção.

Em "Providence", Alan Moore amplia o medo lovecraftiano – Ambrosia Alan Moore em abril deste ano, em seminário na cidade de Liverpool.

Oito anos depois, e por uma situação econômica não tão favorável, o autor de V de Vendetta e Promethea voltava a trabalhar para Avatar Press com uma minissérie de quatro números, Neonomicon, uma continuação de The Courtyard. Com Jacen Burrows de volta aos lápis, esta série ampliou o que foi criado em 2003 e distorceu a visão de Northampton sobre o trabalho de Lovecraft (o mesmo foi mencionado na série, jogando habilmente com a metalinguagem, parodiando com assuntos tabus como sexo ou humor explícito. O resultado foi um trabalho que agradou que conseguem compreender o jogo metatextual e literário oferecido em sua obra, como em a Liga Extraordinária, mas também decepcionou outros que não receberam bem o tom sádico da proposta.

Em "Providence", Alan Moore amplia o medo lovecraftiano – Ambrosia

Em Providence, lançado pela Panini, Alan Moore não só volta a trabalhar para a Avatar Press, mas também submerge de novo no mundo do autor de At the Mountains of Madness, mas com um ponto de vista oposto ao que fez em The Courtyard ou Neonomicon. O roteirista britânico desenvolve aqui um projeto mais ambicioso, ampliando consideravelmente o que fez anteriormente. E narra uma história no ano de 1919, onde Robert Black, um jornalista judeu, que abandona seu trabalho como redator no The New York Herald para viajar a Nova Inglaterra com a missão de reunir informações para escrever um livro sobre o lado oculto da sociedade norte-americana.

Em "Providence", Alan Moore amplia o medo lovecraftiano – Ambrosia

O personagem é uma versão de outro Robert Blake, aquele que Lovecraft utilizou em seus Mitos de Cthulhu, e que aqui inicia suas investigações a partir de um antigo livro árabe, o “Kitab al Hikmah al Najmiyya”, escrito pelo alquimista Khalid Yazid no século VIII d.C, um possível rival do fictício Necronomicon de Abdul Alhazred, que aparece em alguns relatos de Lovecraft. A busca de uma cópia do livro leva Robert a locais como Rhode island, Salem e Athol, onde terá contato com pessoas que confirmaram a presença de uma ameça sobrenatural de natureza arcana que não é de origem terrena.

Os quatro primeiros números, aqui compilados num volume de capa dura, confirmam que uma obra como Providence é o projeto mais ambicioso que Alan Moore tem desenvolvido dentro da Avatar Press. Uma homenagem a um universo tão rico e extenso como o do escritor nascido na cidade que dá nome à série e que contém muito da identidade conceitual e narrativo do autor de Watchmen. A estrutura do volume é de uma investigação por parte de um jornalista que busca escrever sua “grande novela americana”, assemelhando a uma aventura gráfica, ao qual o protagonista vai pouco a pouco encontrando pistas que formam peças de um enorme quebra-cabeça que aos poucos toma forma.

Com seu habitual controle do tempo narrativo Moore tece pouco a pouco uma intrincada trama repleta de referências ao universo literário lovecraftiana e injeta em cada um dos episódios o tom dos relatos de Howard Phillips, com personagens que surgem entre a lucidez (Tom Malone) e a demência (os membros dos Wheatly a la American Gothic de Grant Wood), retratando o lado oculto da América do início dos anos 1910-1920, com os efeitos da Primeira Guerra Mundial, a chegada do nazismo e os ataques aos imigrantes em Salem, construindo uma obra narrativamente brilhantes, com conexões diretas com The Courtyard e Neonomicon.

Jacen Burrows não chega a ser um grande desenhista, as se comparamos seu trabalho em Providence com o que realizou em outros relatos de Moore inspirados na mitologia de Lovecraft o salto de qualidade é notável. O ilustrador de Crossed segue tendo um problema com o imobilismo que retrata seus personagens, mas compensa ao retratar paisagens – os portos de Salem, por exemplo – que transmitem ao leitor a atmosfera serpenteante e úmida que exalam os relatos lovecraftianos.

Contudo, curiosamente o melhor de um título como como Providence não está na História em Quadrinhos propriamente dita, e sim no material que complementa cada um dos capítulos e que é um recurso narrativo que Moore já utilizou em algumas de suas obras. Cada um deles, como um apêndice, apresenta um trecho do “Livro de Notas” de Robert Black, que escreve ao modo de diário suas impressões e ideias relacionadas com o que quer relatar em seu livro ou os segredos acerca de sua própria personalidade, não revelados a ninguém. Os textos a modo literário conseguem enriquecer o protagonista (conheceremos suas tendências sexuais, gostos literárias, medos e predileções) e reúne material extra ao que ocorre nos quadrinhos, como também serve a Moore julgar com inter e metatextualidade, fazendo referência diretas a autores como Edgar Allan Poe (grande inspiração para Lovecraft) e algumas mais veladas a Terry Pratchet e seu Discworld.

Com este volume, recompilado pela Panini, caprichado que inclui capas oficiais e alternativas, Alan Moore mostra só a ponta dos tentáculos de Providence.  A dupla direciona o trajeto físico e existencial de seu personagem jornalista na busca de um mundo oculto regido pelos Grandes Antigos, nascido da mente de um dos escritores mais rompedores da história da literatura fantástica e de terror. Rendendo tributo a Lovecraft, mas sem evitar abordar temas tabu relacionados com sua obra ou vida pessoal, como o sexo ou a xenofobia – algo já feito em The Courtyard and Nenomicon – mas bem mais sutil, o roteirista Lost Girls segue em plena forma e que graças ao seu trabalho e de outros autores do nível de Warren EllisGarth Ennis e Simon Spurrier a Avatar Press está se revelando como um selo capaz de editar obras de alta qualidade, que atrai a todos os tipos de leitores, mas para aqueles que confessam gostar de sensações fortes e da violência explícita é uma mão na roda.  Louvado seja Cthulhu por isto.

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