Gata põe em xeque a harmonia de um casal em romance de Jun’ichiro Tanizaki

Relações de dominação e submissão sempre alimentaram a literatura de Jun’ichiro Tanizaki. Se no clássico Diário de um velho louco ele aborda como um homem senil é manipulado pela jovem nora de belas curvas, neste A gata, um homem e duas mulheres o autor de As irmãs Makioka eleva à quinta potência o nível de complexidade nos relacionamentos afetivos entre seus personagens. Publicado originalmente em 1936, o romance põe a gata Lily no centro da trama protagonizada pelo casal Shozo e Fukuko, e ainda pela ex-mulher do primeiro, Shinako.

O autor parece recorrer ao felino como metáfora para a falência dos relacionamentos humanos – e nesse sentido a verve do autor é notável. Shozo adora mimar a gata de todas as formas possíveis, o que deixa Fukuko enciumada — fato que já havia se dado também com a ex-esposa. Ciente da possibilidade de que isso volte a se repetir no novo relacionamento do ex-marido, Shinako planta a discórdia ao sugerir à rival Fukuko que lhe devolva a bichana, única “filha” do casamento desfeito.

É a gata Lily, portanto, que, à primeira vista, se insinua como ponto de desequilíbrio na normalidade dos personagens. A intimidade que Shozo dispensa a Lily, como lhe dar de comer diretamente na boca, está longe de se repetir com a futura esposa. É curioso constatar aqui uma iconoclastia tanizakiana: o autor, que com frequência abordou a subserviência da mulher, fragiliza seu personagem masculino, Shozo, mas propondo um protagonismo feminino graças à presença magnética da gata.

A segunda novela que compõe a presente edição, O cortador de juncos — publicada originalmente em 1932 —, propõe uma espécie de homenagem ao teatro nô ao estruturar uma “história dentro da história”. Caminhando pelas cercanias do rio Yodo, em Okamoto, um homem cruza por acaso com um desconhecido, com quem trafega em reminiscências. O primeiro conta ao interlocutor a história de seu pai, um homem que, na juventude, viu-se dividido entre duas irmãs – uma história de amor complexa e imprevisível.

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Em O cortador de juncos, alusões diretas e indiretas a Genji monogatari [O romance do Genji], que costuma ser apontado como o primeiro romance do mundo (escrito no século XI por Murasaki Shikibu), representam o esforço de Tanizaki em espelhar a estética da era de ouro da literatura clássica nipônica.

Daí a opção por trechos longos, com pouca pontuação, como forma de reproduzir aquele peculiar estilo narrativo. Tais elementos, no entanto, não atenuam o virtuosismo da trama em si, muito bem combinada a um importante pano de fundo histórico e à tensão erótica característica do autor.

A gata, um homem e duas mulheres e O cortador de juncos, nunca antes editados no Brasil, sintetizam ambos com precisão algumas das temáticas que alçaram Jun’ichiro Tanizaki ao rol dos grandes da literatura japonesa: em comum, personagens desvirtuados, relações amorosas triangulares e casamentos de conveniência.

O autor

d6c2e4fce76e5dfabeb10ad04be00704Jun’ichiro Tanizaki, nascido em 24 de julho de 1886, viveu e estudou em Tóquio até o terremoto de 1923, quando mudou-se para a região de Kyoto-Osaka, cenário de muitas de suas obras.

Mais transgressor do que seus compatriotas de ofício, o universo de Tanizaki é centrado na sensualidade e no erotismo, sendo que infidelidade, fetichismo, tendências sádicas e voyeurismo não coíbem os personagens de realizar seus anseios, bem na tradição budista que desconhece a noção de pecado – Tanizaki jamais viajou ao Ocidente e não era influenciado pelo cristianismo e suas normas morais. Foi o primeiro escritor japonês eleito como membro honorário da American Academy of Arts and Letters. Dentre suas principais obras estão Amor insensato [1924], Voragem [1928], Há quem prefira urtigas [1929], As irmãs Makioka [1943], A chave [1956] e Diário de um velho louco [1961]. Faleceu em 30 de julho de 1965

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