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Os olhos da infância em Valter Hugo Mãe

A Literatura é inspirada pela realidade, contudo busca ultrapassá-la. Para isso, é importante e necessário que o bom escritor conheça o lugar-comum e as regras sociais que se fazem presentes naquela porção de realidade que deseja mostrar para então reinventá-los de acordo com o conflito imaginado. Isto explica o êxito de Valter Hugo Mãe em “Homens imprudentemente poéticos” (Biblioteca Azul, 2016).

Com domínio do cenário e dos personagens que o compõem, o recente livro do escritor explora uma vila no Japão antigo. Ambiente pobre, sem amor, os habitantes perseguem a sobrevivência como autômatos; a solidão é a companhia diária e o luto o prêmio pela vida. No cenário insalubre, Valter nos apresenta uma contradição: o personagem principal é um artista, Itaro, um artesão de leques. Com o bambu que recolhe da Floresta dos Suicidas (outra contradição) mantém a sobrevivência própria, de uma criada, e da irmã cega. A arte, apesar de tudo, persiste e sustenta.

Itaro não é um artesão comum. Presságios ruins e sempre precisos chegam até ele quando mata um animal. Este dom/maldição o acompanha, e, assim como Macbeth escutando as bruxas, não sabemos se o destino do artesão é impelido ou não por conta das adivinhações que recebe. O personagem que atua como nêmeses de Itaro é o vizinho e fabricante de tijolos, Saburo. A relação entre os dois transita entre amistosa e bélica, uma guerra fria, de acordo com a intensidade do drama desejado por Valter.

O cenário enxuto, provinciano, é o preferido do autor. Seus livros pregressos exploram vilas, aldeias, e mesmo em “Máquina de fazer espanhóis”, o abrigo de idosos onde o personagem principal é exilado contra a vontade incorpora as qualidades de um pequeno povoamento. A princípio, poderíamos dizer que Valter utiliza estes espaços diminutos para nos surpreender com densas histórias de sobrevivência, contudo, outra abordagem pode sugerir que o êxito dele está em nos conduzir novamente à infância.

A escrita de Valter resgata o nosso olhar infantil que se perdeu ante os olhos treinados para a vida adulta. Infantilizamo-nos porque os olhos de adulto falham em captar a integralidade da história contada pelo autor. Enquanto crianças, reencontramos o prazer pelas descobertas, o preconceito não estabelecido, o poder da imaginação, a esperança do recomeço, o fascínio das pequenas felicidades, e, sobretudo, a empatia pelo semelhante.
Valter Hugo Mãe nos regride pela escrita da melhor forma possível.

E como se não bastasse dobrar o leitor aos olhos da infância, o autor novamente ousa na linguagem empregada. As frases por vezes surgem reviradas, novas, como se polisse as construções com o zelo de um grande gramático. Como apoio à escrita, encontramos cenas dramáticas construídas com simplicidade e eficiência; somos pegos de surpresa pelo escalonamento do drama e não será exagero dizer que lágrimas podem se formar durante a leitura deste livro.

Por fim, uma coisa que vale ser mencionada é que uma das dedicatórias de Valter é para Hayao Miyazaki, um dos mais respeitados e conhecidos nomes da animação japonesa, pai de joias como, só para citar algumas, “Princesa Mononoke”, “A Viagem de Chihiro” e “O Castelo Animado”. Se você conhece alguma das obras de Miyazaki, fique sabendo que Valter também o considera uma grande influência, como ele já relatou em entrevista. Assim, pode esperar de “Homens imprudentemente poéticos” a mesma beleza e fascínio contidas no mestre japonês da animação. A saga de Itaro, um pobre artesão de leques, que luta para estruturar a família enquanto é ameaçado por seu vizinho oleiro, exige resiliência, é dura, por vezes cruel, mágica, mas certamente fascinante. Leitura mais do que indicada.

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