"Paterson" relembra primeiros filmes de Jim Jarmusch – Ambrosia

“Paterson” relembra primeiros filmes de Jim Jarmusch

Fazia um bom tempo que eu não gostava tanto de um filme de Jim Jarmusch. Apesar dele ter se mantido coerente na forma cinematográfica durante toda sua carreira, algo de sua essência mais longínqua parece estar bastante aflorada em “Paterson” (idem, 2016), que, aos poucos, e sorrateiramente, atinge lugares aonde apenas os primeiros longas de sua obra me levavam.

O filme homenageia as pequenas coisas do dia a dia. Sutilezas que passam imperceptíveis em meio aos mecanicismos da repetição. Alegrias que se escondem nos mais breves gestos ou no simples fato de acordar ao lado da pessoa que ama. Mais uma vez, Jarmusch explora uma certa lentidão, lentidão esta de quem observa, com to-da-pa-ci-ên-cia-do-mun-do.

Para dar vazão à sua mensagem-visão de mundo, o diretor escolheu um motorista de ônibus como protagonista de sua história, retratado em sua alma curiosa e atenta. Alguém com um dos trabalhos mais menosprezados de todos. Alguém que deve repetir os mesmos horários e os mesmos trajetos todos os dias, de tal modo que não precisa nem mais de despertador. Seu corpo já está acostumado a obedecer a ordem matinal de levantar às 6:30 da manhã.

A narrativa do filme se constrói a partir dessa repetição. E a partir daquilo que se espera e se desdenha, ele aos poucos insere pequenas brechas luminosas. Em meio à rotina, pequenos espasmos atiçam os cílios das superfícies estáveis. Um casal em rompimento, um jogo de xadrez em contínua e obcecada batalha consigo mesmo, um rapper que ensaia na lavanderia, e assim por diante.

Ser motorista de ônibus lhe coloca em posição privilegiada para poder prestar atenção nas conversas alheias, acompanhar de beira de olho os movimentos, sorrir das pequenas besteiras ou “bunitezas” compartilhadas. Os assuntos são sempre variadíssimos. Não é necessário ouvir o começo ou o fim, nem é necessário que façam sentido. O importante é o som, é a forma de se expressar, o desenho dos corpos – esse tempo aparentemente morto onde ele e eu nos perdemos no deleite de estar presente.

Para acrescentar ainda mais elementos de surpresa, este motorista de ônibus, sensivelmente interpretado por Adam Driver, é um poeta. Todos os dias, no café da manhã, antes de começar o trabalho ou nos tempos livres, abre um pequeno caderno secreto e anota palavras em torno de alguma impressão.

As primeiras palavras parecem ecos de uma alma infantil. Aos poucos a ingenuidade vai se transformando em uma apreciação bastante exata da realidade. Aquilo que parecia ser uma construção boba vai ganhando ares de alguém que sabe exatamente o que está fazendo. Que está constantemente e conscientemente escolhendo cada frase de seu poema para melhor expressar aquilo que pensa.O poeta Williams Carlos Williams é o grande ídolo de nosso protagonista. Médico, porém, era desses que encontrava tempo em meio à sua profissão aparentemente exata, devaneios e desvios no lirismo da escrita.

Sua poesia era bastante imediata e simples, poderia-se dizer. Escrita sem floreios ou rimas rebuscadas. Composta mais por coincidências sonoras, imagens sugeridas, ações descritas e uma imensa atenção. E nessas citações e autorreferências, Jarmusch preenche um universo que defende que nada é apenas o que parece e que temos todos o potencial de experimentar ou até de produzir arrebatamento.

Paterson é o nome de nosso personagem, da linha de ônibus que dirige e do próprio bairro por onde vive e circula. Uma coincidência quase ridícula que coloca-o ainda mais no patamar do mundano. É um bairro pobre, majoritariamente habitado por negros, e até certo ponto, indicado como perigoso. Essa é outra característica muito interessante na cinematografia de Jarmusch: o interesse por setores e camadas mais à margem em algo que parece uma relação de profunda admiração e carinho pelos ambientes retratados. Ambientes como bares e esquinas habitados pelo comum.

Ainda no bar, temos mais uma demonstração daquilo que o filme apresenta o tempo todo: o valor insurgente do banal. As paredes são ocupadas por reportagens e menções a pessoas ilustres que nasceram ou viveram no bairro. De modo a apontar para o excepcional possível naquele lugar esquecido.

Existe algo de muito bonito no não lapidado do dia a dia. Jarmusch recentemente havia apontado pra isso em “Os Limites do Controle” (2009) e, agora, aprofunda, mais diretamente, a presença contínua da arte entremeada nos poros daquilo que parece quieto e inofensivo. Desta vez, fala da poesia de modo frontal, brusco. A poesia que toca o entorno de forma quase palpável, que descreve sem a realidade de maneira quase seca e, através dessa brutalidade atinge uma outra forma de enxergar as coisas e o mundo. Claramente, a influência maior é a poesia Beatnik dos anos 60.

O sonho e o absurdo são outros dois elementos bastante fortes no filme. Sonho em forma de noite que imagina, mas também em forma de desejos que almejamos mesmo sem saber como realizá-los. Distantes lampejos que se formam em nossas mentes muito antes de se concretizarem. A mulher de Paterson é uma personagem que vive em sua fantasia. Em suas fantasias, melhor dizendo, pois são várias. E o filme, felizmente, é generoso com ela.

Em todos os momentos, em todas as relações, sejam elas rasas ou não, existe uma beleza incomensurável. “Paterson” consegue explorar todas estas sutilezas e trazer para os olhos e para a pele que assistem o filme, uma sensação de abertura e um convite a enxergar.

Filme: “Paterson” (Paterson)
Direção: Jim Jarmusch
Elenco: Adam Driver, Golshifteh Farahani, Barry Shabaka Henley, Rizwan Manji, Trevor Parham e Chasten Harmon
Gênero: Comédia, Drama
País: EUA
Ano de produção: 2016
Distribuidora: Fênix Filmes
Duração: 1h 55 min
Classificação: 12 anos

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