“Que Horas Ela Volta?” e a perspectiva das perspectivas…

"Que Horas Ela Volta?" e a perspectiva das perspectivas... – Ambrosia

Existe um cinema que está além das polaridades que definem o cinema de autor e o cinema de entretenimento. É o cinema de perspectiva. Aquele que consegue a façanha de se tornar o ponto de vista inequívoco do espectador. Sem artificialismos ou oportunismos dramatúrgicos.

A cineasta Anna Muylaert vem construindo sua filmografia solidificando essa propriedade. Seus filmes são sempre sobre seres em perspectiva. As vezes ela até deixa isso bem claro, de forma bem gráfica como no clímax do ótimo É Proibido Fumar, onde se valeu de uma pequena tela de interfone doméstico, para arregimentar a conclusão de sua trama. Uma sacada de mestre.

Que Horas Ela Volta? é o amadurecimento desse seu cinema. E seu melhor filme. Anna debruçou-se sobre o complexidade e o paradoxo de uma sociedade que se revela segregacionista já dentro de suas relações domésticas. E o quanto isso é perturbadoramente assimilável. Sob todas as perspectivas.

A pernambucana Val (Regina Casé)se mudou para São Paulo a fim de dar melhores condições de vida para sua filha Jéssica. Com muito receio, ela deixou a menina no interior de Pernambuco para ser babá de Fabinho, morando integralmente na casa de seus patrões. Anos depois, Jéssica lhe telefona, pedindo ajuda para ir à São Paulo, no intuito de prestar a mesma prova. Os chefes de Val recebem a menina de braços abertos, só que quando ela deixa de seguir certo protocolo, circulando livremente, como não deveria, a situação se complica.

O incômodo da percepção vem justamente da medida que a diretora usou entre o distanciamento moral e a acepção crítica de sua história. Para tal, foi de extrema importância ter uma interpretação tão contundente como a de Regina. A atriz pode ser considerada uma espécie de Julieta Massina tupiniquim.

Assim como a atriz italiana (e Felliniana), Regina intriga ao construir sua interpretação entre o instinto e a precisão, dois pontos, a priori, tão antagônicos numa concepção cênica. Sua Val existe de verdade e praticamente, traz o filme para dentro de si. Camila Márdila acompanha de forma brilhante as nuances da relação de sua personagem com a mãe. E o restante do elenco (desde a apatia orgânica de Lourenço Mutarelli até a humanidade do que pode se chamar de antagonismo de Karine Teles) forma o êxito de um conjunto bem consistente.

Numa das cenas mais comoventes do longa, Val, personagem de Regina, liga para filha de dentro da piscina dos patrões, já meio vazia. É uma cena carregada de simbolismos. E uma comprovação do quanto Muylaert entende o seu cinema como um documento de um tempo. Sob suas próprias perspectivas? Não exatamente. Ela continua muito interessada em promover em você, a perspectiva do hoje para um bom juízo de valor do amanhã.

Leia-se: filme obrigatório para conhecer um Brasil sem autopiedade e o que você representa nele, mesmo dentro de casa.

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