O Brasil continua na disputa pelo Oscar de Melhor Filme Internacional, mas outros bons candidatos ficaram pelo caminho. Um deles é o novo filme de Rithy Panh, diretor cambojano que tem como projeto fazer um retrato cinematográfico de seu país, e desta vez apontou sua câmera para um momento relativamente recente da História da nação, que ainda deixou marcas, sobretudo cicatrizes proeminentes e feridas abertas.
Antes, uma pequena lição de História do Camboja: lar do Império Khmer desde 802 d.C., no século XIX a área passou a ser um protetorado da França. Foi ocupado pelo Japão durante a Segunda Guerra Mundial, e após o fim desta, declarou independência da França em 1953. Afetado pela Guerra do Vietnã, houve um golpe de Estado apoiado pelos Estados Unidos em 1970, e cinco anos depois começou o governo do Khmer Rouge, patrocinado pela União Soviética. É nesse contexto que surge o ditador Pol Pot, responsável por um genocídio que dizimou cerca de um quarto da população do país na época.
Num tempo não estabelecido, um trio de jornalistas é convidado pelo governo, mais especificamente o partido no poder, Angkar, para fazer reportagens sobre o novo Camboja, um local onde não há mais ricos ou pobres. Lise (Irène Jacob), a única mulher do trio, tem uma missão secreta durante a cobertura: encontrar Bophana, tradutora que trabalhou com ela no passado e que foi remanejada, junto a outros intelectuais, para uma cooperativa rural. Ela quer tirar Bophana do país, porém os conflitos entre os próprios jornalistas frustram o plano, que de fato não passa disso: um plano.
Alain (Grégoire Colin) e Paul (Cyril Gueï) se desentendem quando o assunto é o que devem fazer estando no Camboja. Aceitam o que lhes mostram, que é o que o governo quer compartilhar com o resto do mundo, ou denunciam o que veem? O jornalismo já foi chamado de Quarto Poder, em adição aos três elencados por Montesquieu, e também de “primeiro rascunho da História”. Reportar, denunciar e não se calar são ações que todo jornalista não deve temer em pôr em prática, mas, como no filme, o instinto de sobrevivência pode falar mais alto.
Até que chega o clímax: a entrevista com o ditador Pol Pot, chamado de Irmão nº 1. Ele concede a entrevista como agradecimento pela visita de Alain, que havia estudado com ele na Sorbonne muitos anos antes. Ficando sempre nas sombras, Pot se surpreende com uma mulher sendo correspondente estrangeira, mas não era para tanto: basta nos lembrarmos de Martha Gellhorn, companheira de Ernest Hemingway e famosa correspondente de guerra que cobriu diversos conflitos.
Em plena Guerra Fria, o Khmer Vermelho tomava ambos os lados como inimigos. É dito no filme que traidores podem estar trabalhando para a KGB e a CIA e o Vietnã, país vizinho aliado à União Soviética, era o principal inimigo. Apesar da proximidade ideológica com a URSS, patente por exemplo na ideia de que não existiriam ricos ou pobres no novo Camboja, o governo do Khmer Rouge é mais isolacionista do que qualquer outra posição.
Algumas sequências do filme são encenadas através de maquetes com bonecos esculpidos em madeira representando cada personagem. Além de adicionar dinamismo à narrativa, o recurso facilita mostrar situações de doença e morte de forma econômica mas não menos poderosa. Faz-nos lembrar que muitos governos brincam com seus cidadãos como se fôssemos peças de um jogo, mas as consequências são reais.
São usadas imagens de arquivo da época para nos ambientar e mostrar por onde passaram nossos personagens. E estes personagens são inspirados em figuras reais: a base para o filme foi o livro de 1986 “When the War was Over: Cambodia and the Khmer Rouge Revolution”. A obra literária narra a visita ao Camboja de três figuras: os jornalistas Elizabeth Becker e Richard Dudman e o intelectual Malcolm Caldwell.
Pol Pot cita o revolucionário francês Danton: “Sejamos terríveis, para que o povo não tenha que ser”. Frente a essa citação e a essa figura tão maquiavélica, é normal que os jornalistas tenham uma crise de consciência. A situação retratada aconteceu no passado, mas pode se repetir atualmente. Mais que um filme sobre uma entrevista real, este é uma lembrança do poder e das responsabilidades do jornalismo.
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