Há uma frase bastante difundida de Virginia Woolf que diz: “pela maior parte da História, “anônimo” foi uma mulher”. Felizmente, nos últimos tempos a sociedade vem jogando luz sobre as mulheres antes anônimas e agora reconhecidas por seus feitos no passado. Por exemplo: você sabe quem foi a primeira mulher a ser aceita na Academia Brasileira de Medicina? Pois agora, através do cinema, fique sabendo: foi Madame Durocher.
Marie Durocher (Jeanne Boudier) é uma jovem francesa que vem de uma longa linhagem de mães solteiras. Mas ela veio ao mundo para quebrar padrões. Sua vida, como a de todos, é uma oscilação entre alegrias e dissabores: a doença e morte da mãe (Marie-Josée Croze), o casamento com Pedro (Armando Babaioff), o nascimento do filho, o assassinato brutal do marido num mal-entendido. Viúva e desamparada, Maria se volta para um ato do passado: lembrando-se de como ajudou num parto, ela decide ser parteira.
O mentor de Marie e responsável por garantir sua entrada no curso de obstetrícia é o médico Joaquim (André Ramiro). À primeira vista causa um estranhamento ver um médico negro em pleno século XIX, com a escravidão ainda vigente. Mas não existiu Luís Gama, negro alforriado, que se tornou advogado e fez livres centenas de escravos? Pela comparação histórica aceitamos a presença do doutor Joaquim, e por experiência própria neste mundo atestamos a presença de outro professor na escola de medicina, o cretino Hermínio (Mateus Solano). Sendo machista até não poder mais, e depois sendo um pouquinho mais, ele ofende e persegue Marie sempre que pode e incentiva os outros alunos a fazerem o mesmo. Há um momento em que Joaquim diz a ele que conservadorismo não teria lugar no Brasil que estava se formando, mas é com pesar que percebemos que ainda há muito machismo e conservadorismo no Brasil de hoje, e inclusive dentro dos cursos de medicina.
Marie, para ser aceita, passa a vestir roupas mais masculinas, ao estilo “Yentl” (1983). Se no musical dirigido e protagonizado por Barbra Streisand a jovem Yentl precisa não apenas adotar vestimentas masculinas, mas se apresentar como homem, é a feminilidade de Marie que a faz ser aceita por muitas pacientes, em especial mulheres que foram vítimas de violência sexual. Sim, porque ela não atende apenas partos: também faz exames de corpo de delito e os abomináveis testes de virgindade. Atende àqueles que ninguém mais quis atender, como doentes de cólera. Marie estava em todos lugares onde um verdadeiro Médico – com M maiúsculo – deveria estar.
Marie tinha, antes da viuvez, duas escravas, que logo torna livres. Uma delas, Clara (Isabel Fillardis), escolhe ficar com Marie. Para além de atestar o bom-mocismo da mocinha, essa manutenção da companhia dá origem a um momento de emoção, comparando as dores da mãe branca e da mãe preta. São diferentes, obviamente, mas quando partilhadas são entendidas não pela razão, mas pelo coração de ambas, Marie e Clara, unidas nessa experiência superintensa que é a maternidade.
A parte final traz Sandra Corveloni como Madame Durocher. Vencedora de um prêmio de Melhor Atriz no Festival de Cannes em 2008, é de se espantar que com esse feito Sandra não seja considerada uma das melhores atrizes que temos neste país. Depois de uma boa performance da Marie jovem, como a Marie madura Sandra brilha e espalha um recado clichê, mas verdadeiro: lugar de mulher é onde ela quiser.
Tecnicamente, o filme é convencional, com dois momentos de boas escolhas. Primeiro, com a câmera subjetiva oscilante para mostrar o delírio de Anne, mãe de Marie, ao ser levada para o hospital. Segundo, a rotação da câmera quando, perto do final, Marie perde seu chão. É quase um plano holandês, sugerindo a vertigem.
Em conversa com ninguém menos que o imperador Pedro II, Marie Durocher diz que “não existe progresso sem a exposição ao desconhecido”. Pela maior parte da História, o “desconhecido” foi ver mulheres ocupando lugares que lhes eram negados sistematicamente. É para pioneiras que as mulheres, hoje maioria exercendo a medicina, deveriam agradecer o duro caminho que trilharam sempre com muita garra. É sobre elas que o bom cinema deveria se debruçar. Que bom que essa tendência se faz também na sétima arte.
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