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Mostra Tiradentes – “Para Lota” convida espectador a uma experiência sensorial de um passeio pela memória da construção do Parque do Aterro do Flamengo

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Para Lota é um filme de Bruno Safadi e Ricardo Pretti, pertencentes a um já estabelecido grupo de artistas-cineastas que, desde meados dos anos 2000, transitam por linguagens tidas como experimentais. Lançado durante o Festival Ecrã em 2024, o longa, meio documental / meio ensaístico, acontece (literal e figurativamente) em torno do Aterro do Flamengo, no Rio de Janeiro.

Primeiro veio a imagem. Após algumas tentativas, o take definitivo: um longo travelling durante apenas uma noite percorrendo toda a extensão do Aterro. A filmagem ficou guardada por um tempo, como uma provocação, como um desejo incompleto ou interrompido. Até descobrirem Lota e suas cartas.

Usualmente associado ao paisagista Burle Marx ou ao urbanista Affonso Reidy, poucos sabem da existência de Lota, arquiteta idealizadora e articuladora da construção do Parque do Aterro do Flamengo.

Nessas cartas, destinadas, em sua maioria, à Carlos Lacerda, seu amigo e eventual governador do Rio de Janeiro, as palavras de Maria Carlota de Macedo Soares trazem detalhes sobre a construção do Parque do Flamengo; inquietudes em relação à burocracia e à demagogia política e uma defesa reiterada à necessidade de se construir espaços pensados, desde sua elaboração embrionária, para servir ao lazer, ao encontro e ao descanso de pessoas das camadas mais populares. 

Através de uma narrativa aparentemente simples, que mescla uma visualidade contemplativa a uma sonoridade epistolar, o filme estabelece diferentes camadas que vão sendo reveladas aos poucos. 

Não só faz um resgate dessa personagem feminina histórica de grande importância, como capta um retrato panorâmico da situação sociopolítica do Rio de Janeiro e do Brasil entre 1963 e 1967, época do início da ditadura militar. 

Leandra Leal interpreta Lota. Carrega em sua voz a potência de uma mulher elegante, afetuosa, teimosa e destemida. Com as nuances de suas pausas e a cadência do tom, a atriz traz tonalidades e empatia para essa personagem que só existe enquanto voz e palavra.

Mariana Ximenes encarna a única outra destinatária de suas cartas, Raquel de Queiroz, em uma resposta pontual e contundente.

Para além das falas, a trilha é composta por três camadas principais: um ruído sutil e contínuo feito vento brando que acompanha o estado permanente desse flanar do olhar; sons de um barco ou bote à remo se deslocando na água, e breves inserções de uma canção alarmista da época que fazia crítica ao aterramento da praia do Flamengo.

Cada uma dessas texturas parece querer intensificar algum efeito narrativo. O som do barco na água surge nos momentos em que a protagonista se sente mais sozinha e desamparada em sua missão, evocando esse gesto solitário de remar em maio à imensidão.

Já os cortes abruptos, que ocorrem em mais ou menos 3 ou 4 momentos, atuam como interrupções do fluxo contínuo. Ali, o tempo pára e o breu toma conta da imagem, seguido de breve silêncio e o retorno do travelling.  

Essas quebras ocorrem também no tom das cartas que, por vezes, parecem endereçadas a outras pessoas. Ao sentir seu projeto-sonho ameaçado, Lota adapta suas estratégias, transitando entre o carinho, a bronca e a súplica.

A filmagem foi feita durante a noite. Pelo reflexo do piso molhado, vê-se que acabara de chover. A cadência da câmera é lenta e suave. Eventualmente, a presença de pessoas na paisagem se movendo em câmera lentíssima revela a desaceleração das imagens feita na edição. A monotonalidade da noite se apresenta em zonas claras e escuras, destacadas por pontos brilhantes de postes luminosos, troncos de árvore e pedaços de arquiteturas.

Conversando com Bruno, eu lhe perguntei sobre a motivação de filmar à noite.

Ele me revela que a filmagem ocorreu durante a pandemia, em um momento ainda de muito medo e receio. O que é interessante, porém, é perceber como estes acasos todos que compõe o filme acabam por enriquecer sua leitura.

Se tivesse sido filmado pela manhã, com a movimentação normal do dia a dia, exemplificaria todas as cenas previstas e almejadas por Lota, e talvez se perdesse numa certa reiteração entre imagem e som. Dissiparia também o ar de mistério e ambiguidade, tão relevantes pro sentido do filme.

Ademais, a tomada noturna traz ao espectador a chance de re-ver de maneira inédita esta paisagem tão conhecida, mas tão pouco frequentada à noite. O cinema tem essa vocação mágica de nos permitir ver de novo pela primeira vez. E eu, que estou diariamente em contato com este cenário, me peguei intrigada pelas imagens.

Da mesma maneira, traço um paralelo com a História, que muitas vezes é dada como já conhecida e morta, quando, na verdade, é uma matéria viva, constantemente revelando novos dados e conexões que nos ajudam a interpretar e entender melhor o nosso presente. Ao trazer a memória de Lota, esta intelectual tão influente na cena cultural carioca entre os anos 50 e 60, os realizadores fazem comentários diretos sobre nosso mundo atual, apontando para um passado, de descaso político e disputas de poder, em constante repetição. 

O filme traz ainda em sua forma e sua relação entre som e imagem, uma brincadeira, por assim dizer, com a medida de espaço e tempo. Enquanto a câmera se desloca no espaço físico, lateralmente acompanhando os 7 quilômetros de trajetória do Parque, os anos vão se passando.

Para Lota possui um misto de melancolia e alegria. Acompanhamos cronologicamente e por um viés afetivo-político a persistência de nossa protagonista em dar acabamento ao seu projeto. Sabemos que ele funcionou, ainda que não tenha sido transposto integralmente. Mas somos sucessivamente relembrados que é necessário muita dor, suor e estratégia de convencimento pra que qualquer iniciativa com interesse público e popular seja minimamente contemplada no Brasil.

Um dos meus filmes favoritos da Mostra até agora.

Raquel Gandra em cobertura da Mostra Tiradentes.

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