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Mostra Tiradentes – Personagens marginalizados em “Baby”, de Marcelo Caetano, inventam caminhos possíveis para o amor e a sobrevivência

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Baby, de Marcelo Caetano, recém lançado no cinema, fez parte da programação da Mostra Tiradentes como integrante da homenagem à atriz Bruna Linzmeyer. Em sua apresentação, logo antes da sessão começar, o diretor fez menção à importância de contarmos histórias e registrarmos imagens de memórias e vidas de pessoas LGBTQIAPN+. 

Interpretado por João Pedro Mariano, nosso protagonista é Wellington, um rapaz de 18 anos que acaba de ser liberado de um centro de detenção juvenil após 3 anos de encarceramento. Sem saber onde seus pais estão, começa uma saga em busca de abrigo, carinho e pertencimento. Aos poucos, vai encontrando várias figuras com quem estabelece trocas, desde as mais verdadeiras às mais superficiais. Dentre elas, está Ronaldo, interpretado por Ricardo Teodoro, um homem mais velho com quem estabelece uma relação dúbia entre a parceria profissional e amorosa.

Se por um lado existe um forte lado romântico, esse amor está ameaçado pela espreita da dependência abusiva e por um sentido trágico dos limites e imposições da pobreza.

Este é um filme povoado por personagens à margem: gays, lésbicas, travestis e trans, gigolôs, pequenos ladrões e traficantes que estão o tempo todo pleiteando suas liberdades e seus desejos. Pessoas que precisam inventar caminhos possíveis para sobreviver em meio ao caos e à indiferença dos grandes centros urbanos. Não só no sentido mais material e imediato das necessidades básicas da vida, como ter uma moradia, pagar as contas e comer, mas também no sentido existencial e emocional, de manter a alegria, a positividade e o amor próprio em meio a tanta violência, preconceito e humilhação.

Encontram refúgio nas pequenas comunidades que constróem juntes, exemplificadas pela narrativa em diferentes ocasiões. Com isso, o filme nos propõe uma reflexão em torno do tema da família. Os jovens encarcerados, os amigos da performance na rua e o núcleo afetivo pouco convencional de Ronaldo são algumas dessas famílias constituídas a partir do encontro, do acolhimento, da aceitação mútua e da escolha. 

A cinematografia trabalha de forma sutil na construção de sentimentos do filme. As cores variam entre momentos mais cinza azulados, que carregam a solidão e imensidão da metrópole, e momentos de tons vivos e vibrantes, com bastante presença do vermelho, verde e amarelo, que sugerem paixão e acolhimento. Essa transição acompanha o estado de espírito das personagens e os espaços por onde transitam. A câmera e os enquadramentos também alternam entre os planos abertos que ressaltam o desamparo e a confusão urbana e planos mais próximos, nos quais nos tornando cúmplices de carícias e afetos.

Em entrevista, Marcelo Caetano falou sobre seu interesse por personagens complexos, falhos e voláteis. O diretor e roteirista não romantiza a virtude nem a moralidade e não faz cinema para retratar heróis imaculados e palatáveis. As suas personagens são frágeis, dúbias e confusas e evoluem de acordo com a narrativa. Caminham por um amplo espectro, assumindo suas contradições e incongruências, mas sem jamais perder a dignidade.

As atuações são apuradas, realistas e viscerais. Despidas de clichês do melodrama, da novela e de estereótipos. Tiro meu chapéu, sobretudo, para nossos protagonistas João Pedro Mariano e Ricardo Teodoro, que estão realmente excepcionais. Criam personagens densas e carismáticas que transitam entre diferentes estados emocionais e conseguem cativar a empatia do público mesmo ao nos revelarem camadas mais sombrias de seus caracteres e personalidades. Não à toa, ambos vêm levando prêmios em vários festivais, nacionais e internacionais. 

Para mencionar algumas dessas premiações, João Pedro Mariano foi eleito Melhor Ator pelo Festival do Rio e Ricardo Teodoro levou Melhor Ator Revelação em Cannes, o Gio de Melhor Atuação no Festival de Lima, no Peru e Melhor Ator Coadjuvante no Festival de Cinema Ibero-Americano de Huelva.

Já o filme levou o Troféu Redentor de Melhor Longa-Metragem de Ficção no Festival não Rio, foi eleito como Melhor Filme LGBTQIA+ no Festival de Lima, e em San Sebastián, na Espanha, foi reconhecido como o Melhor Filme Latino Queer do Ano com o prêmio Sebastiane Latino da edição. E ainda, o diretor foi consagrado com o prêmio de Melhor Direção no Festival Mix Brasil.

Esse é uma história afetuosa, de contato e de pele, mas também de olhares e coisas não ditas. Atua nas sutilezas dos silêncios e momentos breves assim como no espalhafato das luzes neon. Além disso, traz uma abordagem rara no cinema brasileiro, quebrando padrões e estigmas do que se estabeleceu como o imaginário típico gay ao apresentar uma variedade de modos de ser dentro desse universo.

Eu recomendo bastante!

Segue o trailer, pra quem quiser ter um gostinho: 

A Mostra Homenagem também contou com os filmes  “O Vento Frio que a Chuva Traz”, de Neville d’Almeida; “Notícia Populares (episódio 6)”, de Marcelo Caetano; “Uma Paciência Selvagem me Trouxe até Aqui” (2021), de Eri Sarmet; “Se Eu to Aqui é por Mistério” (2024), de Clari Ribeiro; “Medusa” (2021), de Anita Rocha da Silveira; “O Grande Circo Místico” (2018), de Cacá Diegues; e “Alfazema” (2019), de Sabrina Fidalgo.

Raquel Gandra em cobertura da Mostra Tiradentes.

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