Ripley: puro luxo na adaptação de Highsmith para a Netflix

“Creepiness”, em inglês, é a condição daquilo que é creepy, ou seja, bizarro. Uma bizarrice com toques de maldade, pode-se assim definir a palavra em português. Quando deu o ar da graça na série britânica “Sherlock”, interpretando o vilão Moriarty, o ator Andrew Scott definiu novos patamares para o “creepiness”. Depois de uma bem-sucedida incursão na comédia vivendo o padre na segunda temporada de “Fleabag”, ele volta a exercitar seu lado bizarro na minissérie “Ripley” – e o faz com excelentes resultados.

A minissérie já começa com Tom Ripley (Andrew Scott) arrastando um corpo escada abaixo num grande prédio de apartamentos em Roma. Corta para seis meses antes em Nova York. Tom Ripley vive de pequenos trambiques – quando eles dão certo – até que um dia é contratado por um milionário para trazer de volta o filho boêmio dele, que está na Itália – com todas as despesas de Ripley, que aparentemente era amigo do filho nada pródigo, pagas pelo contratante da missão.

Numa casa labiríntica, como que fruto de uma planta arquitetônica que na verdade era uma gravura de Escher, Tom Ripley encontra Dickie Greenleaf (Johnny Flynn) e a namorada Marge (Dakota Fanning). Trata-se de um casal de artistas, ele um pintor sem talento, ela uma escritora / fotógrafa. Logo o foco de Tom muda: ele se distancia de sua missão para focar em seu objetivo verdadeiro, que é matar Dickie e assumir sua identidade. O trambiqueiro supostamente veterano, entretanto, vai deixando vestígios por onde passa, o que põe em risco o sucesso de seu plano mirabolante.

Foi-se o tempo em que filmar uma obra em preto e branco era uma imposição. Hoje, trata-se de uma escolha estilística. Depois de duas adaptações multicoloridas – “O Sol por Testemunha” (1960) e “O Talentoso Mr Ripley” (1999) – era chegada a hora de transportar o mais famoso personagem de Patricia Highsmith para a tela bicromática. De fato, é a fotografia que salta aos olhos e recolhe elogios a cada episódio e fica inevitável a comparação com o filme em preto e branco feito por Alfred Hitchcock a partir de outro romance de Highsmith, “Pacto de Sangue/ Strangers on a Train” (1951).

Outra comparação bastante óbvia é com o cinema noir. O romance “O Talentoso Sr Ripley” só não foi adaptado para os cinemas no período noir porque foi publicado no final do ciclo do noir, em 1955. Todavia, a minissérie comparte do universo noir para além da fotografia: por exemplo, as sequências em que Tom mata suas vítimas e tenta encobrir os crimes são silenciosas, assim como a famosa sequência de crime no clássico noir francês “Rififi” (1955).

Além do elenco já mencionado, temos também a atriz italiana Margherita Buy como a dona do hotel onde Tom se hospeda se passando por Dickie, e também dona do gato Lucio, única testemunha de outro crime cometido por Tom Ripley. Nascida em 1962, Margherita já tem 84 títulos no currículo, entre cinema e televisão, incluindo aí filmes muito distintos entre si, como o filme de antologia que foi fracasso de bilheteria e de crítica, “Elas por Elas”, e os dramas “O Primeiro Dia da Minha Vida” e “O Melhor Está por Vir”, ambos de 2023.

Tom Ripley é ao mesmo tempo muito esperto – aprendendo italiano rapidamente – e muito burro – deixando vestígios de seus crimes. É também múltiplo: confiante quando se apresenta como Dickie, manso quando faz o “papel” de si mesmo, Tom Ripley. Como Tom, descreve Dickie com as palavras “supremely untalented” e como Dickie menospreza Tom.

O showrunner da minissérie é Steven Zaillian, diretor e roteirista. Ganhador do Oscar de Melhor Roteiro Adaptado por “A Lista de Schindler” (1993), Zaillian mais tarde trabalhou sem receber créditos em outros grandes filmes, como “O Resgate do Soldado Ryan”. Indicações ao Emmy certamente virão para ele e também para Andrew Scott.

Quem leu ao menos “O Talentoso Sr Ripley” garante que é possível torcer por este personagem que é bem mais que moralmente ambíguo. Na adaptação para as telas, torcemos por ele porque é interpretado por Andrew Scott. Com essa escolha de elenco, a graça maior reside não em desvendar se Tom será ou não desmascarado, mas sim em descobrir quem será sua próxima vítima.

É feito um paralelo entre a odisseia de Tom Ripley e a vida do pintor Caravaggio, que viveu seus últimos anos escondendo-se após matar um homem. Após uma menção feita por Dickie, Tom passa a se interessar pela vida e obra do pintor. Da mesma maneira que, num dos primeiros episódios, Tom se emociona ouvindo uma cantora, no final ele olha demoradamente para um quadro de Picasso. Assassinos também podem se emocionar com a arte e artistas também podem ser assassinos. Ou, como disse Andrew Scott em entrevista ao site IMDb: “he’s a con artist, but an artist nevertheless”.

As primeiras palavras pronunciadas por Andrew Scott na minissérie são “good timing”. Meses depois que outro filme com um trambiqueiro – “Saltburn”, da provocadora Emerald Fennell – reacendeu o interesse do público pelo tema e pelas aventuras de Tom Ripley – o filme de 1999 ficou entre os mais assistidos na Netflix por algum tempo depois da estreia de “Saltburn” – a minissérie “Ripley” surgiu como programa de streaming de luxo, um deleite para os olhos e um desafio para a mente. A adaptação do primeiro de cinco livros de Highsmith com o personagem Tom Ripley para a tela é um primor.

NOTA 9 de 10

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