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“Sol de Inverno” é um filme cativante sobre paixões

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Passamos o ano colhendo a safra de Cannes, isto é, esperando ansiosamente pela estreia, num cinema perto de nós, dos filmes cujo primeiro público foram os frequentadores do grande festival sediado na costa francesa. “Sol de Inverno” fez sua estreia na mostra Um Certain Regard em Cannes e chega agora aos cinemas graças a uma distribuidora recém-criada, a Michiko Filmes.

A ação acontece num Japão coberto de neve, visão capaz de provocar um arrepio na espinha de espectadores como nós, vivendo em um país tropical e em pleno verão. Nosso personagem principal é o garoto gago Takuya (Keitatsu Koshiyama), que não se sai bem em nenhum dos dois esportes que pratica: beisebol no verão e hóquei no gelo no inverno. É depois dos treinos de hóquei que ele fica do lado de fora do rinque gelado olhando as patinadoras artísticas. Podia ser um caso de paixão por uma das patinadoras, mas é paixão pelo esporte. O treinador Hisashi (Sôsuke Ikematsu) percebe o interesse de Takuya e passa a lhe ensinar as manhas da patinação enquanto retira as manias do hóquei.

O novo interesse de Takuya gera reações diversas. A mãe do menino se preocupa porque não estão pagando o treinador pelas lições particulares. O irmão diz que é uma atividade passageira, que acabará quando acabar a neve. O pai é democrático: pede para o filho escolher a atividade de que mais gosta. Uma garota chamada Sakura (Kiara Nakanishi), que também treina patinação no gelo com o intuito de competir, no começo demonstra ciúmes, mas aceita treinar uma coreografia com Takuya. Os amigos do hóquei, como era de se esperar, zombam do garoto patinador, mas é uma zombaria camarada.

É interessante notar que a principal reação contrária não vem dos amigos ou da família, mas sim de Sakura, que pergunta a Hisashi: “você acha legal colocar um menino para praticar um esporte de meninas?” e complementa com o comentário: “é nojento”. O preconceito internalizado pela garota ainda tão jovem vai além dos papéis de gênero – “coisa de menino” X “coisa de menina” – e afeta a vida profissional e pessoal do treinador.

Na meia hora final é acrescentado um novo conflito que nos faz esquecer a patinação e a já deixada para escanteio gagueira de Takuya, que parece ser hereditária. No anseio de evitar spoilers, não vamos nos aprofundar neste novo conflito, basta dizer que através dele “Sol de Inverno” estabelece um diálogo inesperado com o filme brasileiro Aos Teus Olhos” (2017).

Uma caixa de recordações de Hisashi nos apresenta o ciclo de vida de um patinador profissional, tão semelhante aos ciclos de outros atletas. Primeiro vêm os treinos, indo de amador a profissional, e em seguida as competições, podendo chegar à glória olímpica. Depois o atleta passa a se apresentar sem competir, e termina a carreira ensinando o esporte que o consagrou. Não é um caminho sem altos e baixos, e com um quê até de amargura: percebemos isso no olhar melancólico de Hisashi para as revistas em que sua foto fora publicada.

O que acompanha e embala as lições de patinação é a música clássica, escolha mais óbvia impossível. Hisashi é perguntado se competia ao som de Beethoven, ao que ele responde que não, sua escolha de música era “Clair de la Lune”. A música escolhida para a dança no gelo de Takuya e Sakura é a Dutch Waltz – Valsa Holandesa numa tradução literal – e a partir daí a trilha sonora se diversifica.

O diretor, roteirista, montador e fotógrafo do filme é o prodígio multifacetado Hiroshi Okuyama. Com menos de trinta anos e neste que é apenas seu segundo filme, ele vem colecionando elogios e prêmios, além de comparações com o grande mestre Hirokazu Kore-eda. Okuyama é sem dúvida um destes cineastas para ficarmos de olho e acompanharmos o desabrochar de sua carreira de perto.

A Michiko Filmes é uma distribuidora que faz sua estreia no mercado audiovisual com “Sol de Inverno”. Ela tem sua gênese no podcast Cinema de Varanda, onde se conheceram os críticos Michel Simões e Chico Fireman, hoje sócios fundadores da Michiko. Se todos os filmes que eles trouxerem para os cinemas brasileiros forem tão bons quanto esta pérola, só temos a desejar vida longa à Michiko!  

O título em inglês do filme é “My Sunshine”, o que logo me lembrou da canção “You’re my Sunshine”, gravada, entre outros, por Johnny Cash. O primeiro momento de encanto de Takuya com a patinação parecia um clipe clichê dele se apaixonando pela patinadora, mas felizmente a história seguiu outro caminho, provando que não são só pessoas que podem ser raios de sol na vida de outras pessoas. Paixões vêm em todas as formas, de gente e de coisa. E talvez seja esta a lição do filme – se é que todo filme precisa deixar uma lição: que as paixões possam ser vividas livremente.

Sol de Inverno

Sol de Inverno
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Nota: 9/10 Sol de Inverno
Nota: 9/10 Sol de Inverno
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