Dizem que quando morremos um filme se passa em nossa cabeça, rememorando vivências. É como alguém se lembrando de anos passados que o filme “Todas as Estradas de Terra Têm Gosto de Sal” é construído. Se de início a falta de uma história coerente causa certo desconforto, é aceitando o fluxo de memórias que conseguimos fazer o filme fluir e funcionar no final das contas.
Um pai ensina uma filha a pescar. Concomitantemente, outra filha acaricia um peixe pego numa armadilha. O choque de realidade não vem quando a mãe mostra a uma das meninas como se esfola o peixe. Ele vem quando Mackenzie vê a casa de um homem negro em chamas. Essa é a imagem responsável pelo amadurecimento à força da protagonista, que na cena seguinte já não é mais criança, e sim uma jovem indo nadar com amigos.
E aí a mágica acontece e Mackenzie volta a ser criança. E depois é adulta de novo. E criança mais uma vez. Passamos por momentos que marcaram na memória: treinar beijar com a própria mão, a despedida da mãe, a gestação, as histórias contadas pela avó, momentos com a filha Lily…
Num filme despreocupado com o relógio, mas que consegue aparar as arestas para ter apenas 97 minutos de duração, as coisas tomam seu tempo, como o abraço demorado regado a lágrimas. Este abraço é dado no amigo de infância e juventude Wood, que sempre acompanhava Mackenzie e com quem um relacionamento mais sério não passou de idealização.
Ao que tudo indica – ao menos ao que indica a ausência de aparatos tecnológicos que possam datar o filme – “Todas as Estradas de Terra Têm Gosto de Sal” se passa em comunidades do sul norte-americano antes da luta por direitos civis dos negros na década de 1960. Ao escolher este período, a diretora e roteirista Raven Jackson filma um ambiente e uma sociedade profundamente marcados por exclusão e preconceito racial, cicatrizes que ainda não se curaram mais de 50 anos depois.
“Todas as Estradas de Terra Têm Gosto de Sal” não foi a única produção de sucesso com protagonismo negro a ser distribuída pela prestigiada A24. O mais emblemático exemplo é o vencedor de três Oscars “Moonlight” (2016), dirigido por Barry Jenkins. O próprio Jenkins assina como produtor aqui, e vem acumulando sucessos também nesta função, que exerce ainda no filme “Aftersun” (2022) e na quarta temporada da série de antologia “True Detective”.
Assim como outro filme fora de ordem cronológica, o já cult “Amnésia” (2000), este filme deixa para o público a tarefa de ordenar as peças do quebra-cabeças. Mas parece um quebra-cabeças cujo resultado final importa mais para a diretora e roteirista Raven Jackson, em sua estreia em longas-metragens, do que para os espectadores. Fica patente que é um projeto mui pessoal e talvez isso atrapalhe a fruição – e o fluir – final da narrativa.
Em entrevista para o site RogerEbert.com, Raven Jackson, que também é poetisa, comenta com a entrevistadora como algumas cenas “rimam” entre si e também destaca a importância de um elenco que pudesse expressar emoções com o corpo, sem a necessidade de palavras.
Perto do final, a tia de Lily diz para a sobrinha que “ela não começa nem termina, só muda de forma”. Estava falando da água, mas poderia ser da vida. A mesma água que, misturada com o barro, formava a matéria-prima dos humanos, como a avó contava. É poesia filmada, nada mais.
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