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“Yõg Ãtak: Meu Pai, Kaiowá” traz questões de nosso triste passado recente em filme de singela beleza

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Yõg Ãtak: Meu Pai, Kaiowá é o filme mais recente de Sueli e Isael Maxakali, co-realizado também por Roberto Romero e Luisa Lanna.

Quase sempre em co-autoria com outras pessoas, o casal indígena da comunidade Maxakali vem construindo narrativas cinematográficas desde meados de 2010. Sua filmografia já conta com os longas Quando os yãmiy vêm dançar conosco (2011), Yãmiyhex: as mulheres-espírito (2019) e Nũhũ yãgmũ yõg hãm: essa terra é nossa! (2020).

Quase sempre focados em mostrar seus modos de vida, entre cotidianos e rituais, dessa vez, a trama traz uma inquietude pessoal de Sueli como motivação central.

Desde jovem, ela ouvia rumores sobre o pai Luis, vindo da tribo Kaiowá, no Mato Grosso do Sul. Há anos ela tinha desejo de encontrá-lo. 

Ao longo do filme, acompanhamos conversas com parentes que vão, aos poucos, trazendo mais informações e revelando a complexidade dessa história, que envolve diretamente o período da ditadura militar, ou como eles chamam, tempo dos soldados.

Durante os anos 70, Luis, o pai de Sueli, assim como tantos outros indígenas, havia sido “ recrutado” à força pelos militares e levado para trabalhar no povoado Maxakali. Durante o período de sua permanência, nasceram suas filhas Sueli e Maísa. Não fica claro exatamente como se deu sua partida, se foi fuga ou liberação, mas entende-se que desde sua volta à tribo Kaiowá, ele nunca mais as teria visto.

Conversando com Luisa Lanna, uma das co-realizadoras, após a sessão do Olhar de Cinema, ela me contou que até mesmo a descoberta do paradeiro de Luis só foi possível por uma coincidência milagrosa da vida e da arte. 

Sueli já havia estado no Mato Grosso do Sul uma vez, com a ajuda da Funai, mas não o havia encontrado. Era difícil saber seu paradeiro exato. Além de ser muito andarilho, Luis apoiou presencialmente diversos movimentos de retomada de terras de outros povos indígenas. 

Até que, um belo dia, a antropóloga Tatiane Klein, com quem Sueli já havia trabalhado antes, estava realizando um projeto na comunidade Kaiowá. Em uma das conversas, um senhor lhe contou que havia deixado duas filhas Maxakali pra trás. Tatiane conectou os pontos da história e entendeu que quem estava ali era o pai perdido da cineasta.

Isso foi em 2019. À partir daí, começaram várias conversas por WhatsApp entre os dois e a tentativa de elaborar o possível reencontro. 

O filme torna-se, então, ferramenta documental e veículo transformador. Por um lado, é registro de uma busca pela memória familiar, que acaba tangendo questões históricas profundamente doloridas de nosso passado recente. Por outro, é suporte pragmático imprescindível para tornar viável o reencontro. Foi somente através da verba do filme, literalmente, que se pôde organizar a ida da família de Sueli ao Mato Grosso do Sul.

O tom investigativo adquire carga dramática, comedida, porém potente, pelo uso da estrutura de narrativa paralela, que serve pra aumentar nossa expectativa. De um lado, os preparativos para a viagem, do outro lado, a incerteza da colaboração do pai. Há ainda, dentre os recursos narrativos, o da performatividade. Dois jovens reencenam a estória dos dois Kaiowá que teriam sido levados pra longe de suas terras. Um flerte com a ficção que parece dialogar com uma linguagem própria de elaboração dos fatos.

Concomitante às conversas e à trama, testemunhamos o cotidiano da comunidade, que mistura momentos de costura de roupas, rituais e cantos.

Um gesto extremamente importante, aparentemente sutil, que pontua a passagem do tempo é a pintura de uma grande placa, na qual Isael e Sueli substituem o nome anterior da cidade Teófilo Otoni pela nomenclatura Aldeia Escola, demarcando seu território.

Vai ficando claro que o filme faz parte de um gesto político de ressignificação e reapropriação. 

A própria cena de abertura já nos conduz e nos introduz às questões primordiais.

Ao querer apresentar sua família ao pai, Sueli vai compondo o quadro/frame com seus parentes. Começa pelo meio e aos poucos, um a um vai ocupando as bordas da imagem, até esta ficar totalmente preenchida. Um grupo enorme enorme que ela reitera ser apenas uma pequena parte, mais próxima.

A câmera funciona ali como a base para compor um retrato de família. Nos remete às primeiras fotigrafias feitas pelos colonizadores nas tribos indígenas: retratos pousados de pessoas anônimas usados como peças de fetiche estigmatizantes. 

Sentimos a força que o registro assume como ferramenta de se fazer ser visto e ouvido e de marcar suas existências e estórias. Aqui, o gesto vivo de documentar e compartilhar se torna um símbolo de retomada do uso da imagem por parte dos indígenas. Está ali, assim como em toda a filmografia do casal, como instrumento de poder, capaz de reiterar: nós existimos, nós estamos aqui, esta é nossa terra, estes são nossos cânticos, estas são nossas vidas.

Ressalto ainda uma interessante brincadeira com as camadas do tempo. A mesma cena do começo será exibida para outras pessoas numa tela de computador, demonstrando um descolamento da imagem com seu momento imediato. Estas imagens já nascem atendendo à uma urgência. São já, desde sua ” nascença”, presente e passado, registro do agora e documento histórico. 

Fazer cinema tem sido um ato de resistência para as comunidades indígenas e nós, espectadores, somos convocados como testemunhas e, se possível, aliados.

Este filme fez parte da programação do 14º Festival Olhar de Cinema de Curitiba e está sendo lançado nos cinemas.

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