Paul Verhoeven sempre foi um diretor que gostou de provocar o espectador, mesmo em suas obras mais comerciais da sua fase hollywoodiana, como “Robocop” e “O Vingador do Futuro”. Se “Benedetta” surpreendeu e chocou, certamente foi por não se recordarem de seu pujante histórico fílmico. Seja com a violência gráfica a serviço de uma tenaz crítica social em “Robocop”, a lascívia subversiva de “Instinto Selvagem” ou a sátira soft-porn-gore de “Showgirls”, o diretor holandês nunca poupou as plateias de sua sanha colérica por refletir sobre os males mundanos.
Verhoeven sempre dispôs suas lentes a mulheres fortes – vide Catherine Tramell, que catapultou Sharon Stone ao posto de super estrela, à dama de ferro corporativa Michèle, que fez o mundo se lembrar da grandeza de Isabelle Huppert no mais recente “Elle”. Dessa vez ele foi ao Século XVII, na época da Contrarreforma, lançar seu olhar sobre a história real de Benedetta Carlini (vivida por Virginie Efira), freira do Convento de Madre de Deus, em Pescia. Ela cria um forte laço afetivo com a recém-chegada colega de hábito Bartholomea (Daphne Patakia) e daí surge um romance homossexual.
Adaptado do livro Immodest Acts: The Life of a Lesbian Nun in Renaissance Italy, da historiadora inglesa Judith C. Brown, o roteiro assinado por Verhoeven juntamente com David Birke não se furta a tocar na ferida. As acusações de blasfêmia que o filme sofreu após sua exibição no Festival de Cannes 2021 poderiam mesmo ser esperadas. Verhoeven mira seu questionamento à igreja como instituição e ao próprio conceito de sagrado. A instituição mais poderosa do último milênio serve como alegoria para a renitente (e pertinente) crítica do cineasta às grandes corporações e os malefícios causados por elas.
Com o suporte da magnânima fotografia de Jeanne Lapoirie, o longa ganha tons renascentistas. Algumas tomadas remetem a quadros da época de pintores italianos e franceses. Por mais que não seja uma novidade em se tratando de produções que retratem esse período, não se pode deixar de ressaltar o caprichoso trabalho da cinematógrafa, sob as bênçãos de Pier Paolo Pasolini em sua “Trilogia da Vida” – uma acertadíssima escolha de Verhoeven chamar uma mulher para dar identidade visual a uma história que não deixa de ser um manifesto libertário feminino.
As atuações impecáveis do triunvirato formado por Virginie, Daphne e uma soberba Charlotte Rampling são a força motriz dessa vigorosa peripécia de Verhoeven. Lambert Wilson (o Merovingian de Matrix) também tem seu brilho em uma participação menor, mas relevante para a trama.
“Benedetta” entra para a já recheada galeria de filmes impossíveis de serem esquecidos com facilidade feitos por de Paul Verhoeven, sejam quais forem os motivos. A temporada longe de Hollywood continua beneficiando o cineasta, que pode realizar os filmes que quer, como quer, longe das amarras de grandes estúdios e cobranças por um novo “Instinto Selvagem”. Com esse último título ele nos brinda mais uma vez acenando com a baixa probabilidade de nos depararmos com um diretor engessado e acomodado.
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