Que Horas Ela Volta? – A realidade do passado que ainda se faz presente

Que Horas Ela Volta? – A realidade do passado que ainda se faz presente – Ambrosia

O Brasil tem o maior número de empregadas domésticas do mundo. Segundo estudo realizado pela Organização Internacional do Trabalho em 117 países, o nosso país tem 7,2 milhões de empregados domésticos, sendo 6,7 milhões de mulheres e 504 mil homens. Em 2014, o número de empregadas domésticas em São Paulo era de 634 mil, sendo que 96,5% eram mulheres. Os dados são do Seade/Dieese e apontam ainda que a maioria das mulheres é negra.

Não temos números nesse sentido, mas é possível dizer que muitas dessas mulheres podem ter vindo da região nordeste do país; mulheres que não tem formação escolar completa e que vieram para São Paulo em busca de melhores condições de vida.

O novo filme de Anna Muylaert que, antes mesmo de chegar às telonas no Brasil já foi elogiado em Cannes, aplaudido durante seis minutos em Berlim e aposta da crítica americana para o Oscar 2016, rendeu a Regina Casé o prêmio de melhor atriz no Festival de Sundance, nos Estados Unidos. “Que horas ela volta?” é imprescindível para pessoas de todas as classes sociais — para os patrões da A e B e para os empregados da C e D.

As pessoas podem questionar que o preconceito de classe social não existe mais no Brasil. Na realidade, ele existe, mas parece uma situação cotidiana tão comum que funciona como “cada um no seu espaço” — o patrão sendo patrão e a empregada sendo empregada — e, dessa forma, acaba se tornando “natural” e quase que imperceptível.

Assisti ao filme em uma sala de cinema localizada em São Bernardo do Campo, região do ABC paulista. Lá, havia pessoas de classes sociais distintas. Como eu sei? O jeito de sentar, de comer a pipoca, como se vestem, como conversam enquanto o filme não começa. Este pré-conceito é “natural” do ser humano e irracional, até. É é isso que torna o preconceito de classes, infelizmente, comum.

A história de “Que horas ela volta?” mostra uma empregada doméstica, Val (Casé), que deixou Pernambuco há dez anos e veio para São Paulo para conseguir dar melhores condições de vida à filha, Jéssica (Camila Márdila), com quem não fala todos esses anos. Passado esse tempo, a filha resolve vir à capital paulista para prestar vestibular e acaba morando com a mãe na linda casa dos patrões, localizada no Morumbi.

Ambiciosa, Jéssica não tem papas na língua e gera diversas situações constrangedoras para a mãe. Ela ousa, por exemplo, pedir para para dormir no quarto de hóspedes da casa, que é muito maior e luxuoso que o quartinho dos fundos onde sua mãe mora. Ao longo do filme, podemos perceber várias “coisinhas” que evidenciam o preconceito de classes, seja contra Jéssica, que não engole a situação, seja contra Val, que acredita que deve aceitar como é tratada porque é apenas a empregada.

Uma cena que pode passar despercebida pelo espectador, mas que deve ser notada, é quando Jéssica está tomando café na cozinha e Bárbara (Karine Teles) pergunta se a garota quer suco. Jéssica diz que sim e, então, Bárbara lhe entrega o suco em um copo de plástico bem simples — como se aquele copo fosse para a filha da empregada — enquanto ela, a patroa, bebe o mesmo suco em um copo grande e luxuoso.

Em outra situação, o filho de Bárbara, Fabinho (Michel Joelsas), que é muito ligado à Casé, puxa Jéssica para a piscina e a patroa, em seguida, manda imediatamente trocar a água da piscina com o pretexto que havia um rato nela.

Diferentemente da filha, Val se “conforma” e se comporta como uma empregada que presta seus serviços sem questionar nada. Ela, por exemplo, não liga quando, ao servir os convidados de Bárbara em sua festa de aniversário, ninguém olha em sua cara ao pegar um salgadinho e nem ao menos dizem obrigado. Ela, no entanto, se solta com os amigos de Fabinho, como quem sabe que com aqueles pode falar.

Podemos citar ainda uma relação parecida como a que acontecia na época da escravidão. O patrão Carlos (Lourenço Mutarelli), insatisfeito no casamento, tenta abusar sexualmente de Jéssica e, para conseguir o que quer — sabemos o quê — até a pede em casamento.

“Que Horas Ela Volta?” não é um filme sobre o preconceito entre classes sociais. A mensagem é tornar próxima a relação entre mãe e filha e mostrar como isso é difícil após um hiato de dez anos. E sobre a relação entre mãe e filho que, mesmo morando na mesma casa, são frios um com o outro.

No entanto, as situações preconceituosas, postas de formas sutil nas entrelinhas, se sobressaem e nos ensinam e muito sobre uma realidade do passado ainda presente. Em um filme carregado de drama, muitas vezes Val arrancou risadas do espectador mostrando que, mesmo em situações adversas é possível ser feliz, perdoar e recomeçar.

A diretora Anna Muylaert, em entrevista, disse que “se você nasceu no lado da cozinha, reagirá de uma maneira. Se você nasceu no lado da sala, será uma reação completamente diferente”. Não se trata de ter mais ou menos dinheiro, mas sim de tratar todo o ser humano de forma igual e não o menosprezando. Espero que quem nasceu no lado da sala não seja complacente com Bárbara e que repense a forma como trata sua empregada. E, aos empregados, que o filme também o faça pensar que você não precisa ser tratado como um zé ninguém.

“Que Horas Ela Volta?” entra para a lista de melhores filmes brasileiros dos últimos tempos. Não porque ele é um filme impecável do ponto de vista de direção, roteiro e tudo que faz um filme ser consagrado, mas, sobretudo, porque ele te faz refletir.

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