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Piranesi, de Susanna Clarke – a fantasia em seu labirinto

Susanna Clarke retorna, depois de vários anos de silêncio, com Piranesi, sua homenagem ao artista de mesmo nome e a Borges. O livro, uma das obras de Fantasia, acompanha as aventuras de uma espécie de historiador perdido, com certa alegria, numa mansão labiríntica. Com temas que abordam o conceito de realidade, a luta entre completude e sanidade, a solidão e a catarse da escrita.

Dezessete anos levou Susanna Clarke (1959) para publicar um novo romance. Silêncio e dor enquanto convalescia devido à síndrome de fadiga crônica de que sofre. Em entrevista reconhecia que a doença foi devastadora. “Havia dias em que eu não podia fazer nada porque fazer qualquer coisa era terrivelmente doloroso. Então eu parei de escrever.” Clarke não saia de casa; viajava apenas com a imaginação, graças às leituras que o marido lhe fazia.

Aos poucos ela se recuperou. E resgatou uma ideia que teve aos 20 anos, depois de ler Borges, e da qual havia escrito algumas páginas. «Aquelas histórias de Borges […] sobre labirintos despertaram algo em mim, […] e que lhes respondesse com a minha própria história. (De repente) Uma casa enorme me apareceu de alguma forma cercada pelos mares». E assim foi concebido Piranesi (2020; Morro Branco , 2021), seu livro de redenção, que o consagra também como o fenômeno que trouxe Jonathan Strange & Mr. Norrell (Seguinte, 2015 ) e The Ladies of Grace Adieu (2006), a antologia que conta mais um pouco do universo que criou.

O título do novo livro de Susanna Clarke é uma homenagem à obra do artista genovês Giovanni Battista Piranesi  (1720-1778), um dos grandes arquitetos, gravadores e teóricos da arquitetura do século XVIII. Piranesi teve uma poderosa influência nos labirintos de Borges, e especialmente no de “O Imortal” de El Aleph (1949), o livro que cativou Clarke em seus tempos de faculdade.

Em uma realidade onírica, magia e razão estão intrinsicamente ligadas nesta obra que se entranha por tênues labirintos místicos e extraordinários. A casa de Piranesi não é um prédio qualquer: seus cômodos são monumentais, com paredes forradas de milhares de estátuas, e seus corredores são intermináveis. Dentro do labirinto de corredores há um oceano aprisionado no qual as ondas quebram e as marés inundam as câmaras. Mas Piranesi não tem medo: ele entende tanto a investida do mar quanto o padrão do labirinto, enquanto explora os limites de seu mundo e avança, com a ajuda de um homem chamado O Outro, em uma investigação científica para chegar ao Grande Conhecimento Secreto.

Análise

Como um Minotauro, o Piranesi de Clarke ama e defende a casa em que mora; ele não é o habitante surpreso daquela Grande Mansão, nem os abjetos habitantes de Gormenghast que conspiram para usá-la em benefício próprio, mas uma espécie de “historiador” que aceitou seu destino. A originalidade do romance está na forma como é contado, o que atesta o caráter único da caneta (e talento) de Susanna Clarke: Piranesi se expressa com uma cronologia própria, nascida de suas próprias experiências na Casa, e com uma percepção pessoal da realidade que o cerca: tudo é comparado com as inúmeras estátuas que presidem os quartos.

Clarke opta por uma narração epistolar, e desde a primeira página notamos que não é um romance convencional. A autora apresenta uma sucessão avassaladora de dimensões, números e alturas que visam dar a sensação de que a Casa, o lugar por onde passa Piranesi, é uma entidade insondável. Traça-se um labirinto que tem seu reflexo tanto nas diferentes salas quanto na mente do protagonista-narrador, personagem cuja sanidade pode ser questionada pela lógica de seu raciocínio. Alguma centelha de lucidez ainda se aninha nele, quando lembra pedaços de uma vida passada que se insinua pela inserção de elementos estranhos à Casa (e que funcionam como concessões ao leitor para assumir o enigma da narrativa).

Em Piranesi é invocada uma magia antiga, muito antes do homem civilizado. Como em Jonathan Strange & Mr. Norrell, a narrativa fala da perda de comunicação entre o homem e o mundo “não visível”, povoado por energias imperceptíveis. Desenvolve uma Realidade alternativa, talvez mais ideal que esta, cujo conhecimento e uso podem ser prejudiciais e perigosos. Egoísmo e ambição de poder são novamente defeitos terríveis, mas para entender por que eles estão aqui, você terá que se perder entre 7.678 quartos.

A realidade que ensina é estranha, monótona – as repetições têm uma cadência, e funcionam como um artifício literário eficaz – e exige que o leitor se esforce para compreendê-la. Uma vez aceito, porém, o estranhamento se transforma em curiosidade enquanto Piranesi descreve atos, procedimentos e até encontros: o Outro também parece morar na Casa, com quem costuma se encontrar para trocar conhecimentos.

Em menos de um terço do livro, Clarke desperta o leitor. Questões sobre o que está acontecendo são levantadas. O leitor chegará à explicação dos fatos como se tivesse sido submetido a um transe induzido, pois o mundo descrito é tão enigmático que parece o cenário de um filme mudo, ou de um sonho. O desejo de Clarke é que o leitor, mais do que ficar à vontade na Casa, sinta a necessidade de fugir dessa monotonia. Não surpreendentemente, Piranese também é uma reflexão sobre inteligência e sanidade.

O caráter metódico do personagem-título, que anseia por anotar tudo o que sabe e percebe sobre a Casa, é como um cientista que está realizando um experimento de vital importância. Em seus diários nos desafia, se comunicando por meio da escrita e traz a própria Clarke se libertando de  de sua letargia.

Através da escrita, a autora recupera forças, se sente novamente. Esta é a história de um retorno e os passos que devem ser dados para recomeçar. É também um romance sobre a solidão. Piranesi – como Norrell & Strange – fica sozinho a maior parte do tempo, perdido em quartos colossais, com a única companhia de um Outro, carrancudo e alguns cadáveres que encontrou. Uma reconstrução, onde a solidão em Piranesi é esmagadora e angustiante; tão profunda que imediatamente faz você querer buscar o afeto e o calor das pessoas.

Clarke entendeu o significado de solidão e também de frugalidade: Piranesi valoriza o que temos mas não sabemos aproveitar. Em sua busca constante por uma realidade Ideal, o personagem acaba descobrindo como a vida é construída por uma abundância de coisas inúteis que são úteis para afastar a infelicidade. Um livro que é tanto um evento literário quanto um renascimento e uma catarse. Vamos torcer para que não precisemos gastar mais dezesseis anos para ler uma fantasia tão brilhante novamente.

Nota: Excelente 4,5 de 5 estrelas

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