Enquanto Deus não está olhando, o que pode acontecer? Uma mudança súbita, um desamparo, uma partida, um desvio? Mas, e quanto a Deus, afinal, está sempre olhando? O título do romance de estreia da jornalista pernambucana Débora Ferraz, vencedor do Prêmio Sesc de Literatura/2014 na categoria Romance e publicado pela Editora Record, deriva de uma conversa entre a protagonista Érica Valentim e o pai, já no meio da narrativa. É dele a reflexão sobre o momento em que Deus não olha, como um lapso de desamparo que pode fazer toda a diferença e que causa um estranhamento difícil de traduzir em palavras. A conversa, no entanto, é uma memória de Érica. Uma das variadas memórias que a personagem vai tecendo ao longo de sua jornada de busca. Nessa jornada, Érica, enquanto tenta sobreviver ao ambiente hostil de uma agência de publicidade e sai eventualmente com os amigos para uma cerveja ou outra, vai elaborando suas novas condições de vida (no presente) e aquilo que pode construir como futuro possível (mas sempre incerto).
Logo nas primeiras páginas do livro, encontramos uma reflexão da protagonista que ilustra essa construção contínua de si, do presente e do futuro (mas também do passado, se nos lembrarmos do que nos ensina a Psicanálise, segundo a qual fatos passados são passíveis de serem criados a posteriori pelo simples fato de os repensarmos, de os revisitarmos, de os elegermos como ponto de pauta de assunto interno). Ela diz: “Estou procurando meu estilo. Ou: Estou buscando expressão. Minha vida, mesmo, ainda está para começar” (p. 9). Érica é uma jovem artista plástica tateando caminhos e continuidades, tanto em sua vida quanto em sua arte.
É desse modo, sem linearidade objetiva e, por isso mesmo, com bastante verossimilhança psicológica, que o romance de Débora Ferraz trata de duas partidas que se relacionam e se misturam o tempo inteiro, e que se reconfiguram conforme o avanço das três partes do romance. Assim, a realidade tanto quanto o presente, o passado e o futuro, não se trata de algo tão objetivo quanto às vezes julgamos ser, e o significado das coisas que nos acontecem, dos fatos que vivemos, das histórias compartilhadas pode ser reelaborado continuamente. É isso o que a autora nos informa ao final da primeira parte do romance, quando entendemos mais profundamente de que busca se trata a de Érica, de que sumiços estamos falando, do que cada um dos personagens representa e como eles se apresentam, paulatinamente, ao longo da hábil narrativa da autora estreante.
Mas esse tracejar e essa ressignificação de si, de passado, presente e futuro, não se constituem em um processo fácil, menos ainda rápido. Ainda na primeira parte do livro, encontramos um insight da protagonista, que luta para se manter na vida com a ajuda do amigo Vinícius, que dela não desiste: “Como em uma comédia de situações, a vida se submete a um simulacro de normalidade e as pessoas se movem (…)” (p. 44). Talvez seja exatamente isso: a vida enquanto simulacro de normalidade, pessoas que vão para seus destinos, seguem em suas rotas, que fazem tudo como se fosse normal, e assim Érica, em sua busca, em sua reconstrução, também percebe o simulacro de sua própria vida. Sua indecisão quanto ao destino a ser dado ao seu ateliê de pintura (ao espaço, às tintas, ao material) é um paralelo dos mais apropriados com a própria vida de Érica, bamba enquanto representação, instável enquanto significação e na espera de aberturas viáveis.
Se Débora Ferraz faz sua estreia enquanto romance premiado (e que bela estreia, por sinal), nota-se que sua habilidade de construção narrativa e seu fôlego incansável são fruto de uma escrita que vem de anos, de uma vontade antiga de se fazer ler e de empreitadas literárias anteriores.
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