Apenas os fãs de Beatles ainda se lembram da existência do longa/documentário Let it Be, que ficou oficialmente disponível no mercado de VHS até meados da década de 1980 e depois nunca mais comercializado oficialmente. Recentemente a EMI vem tentando angariar formas de lançá-lo num DVD cheio de extras e com melhorias de imagem mas ninguém menos que os beatles vivos Paul McCartney e Ringo Starr barraram o lançamento e o estão segurando até então. Por que isso está sendo feito? Por que os fãs não podem ter acesso a este material que possui tantas cenas misteriosas, excluídas e até performances ao vivo? Vamos relembrar e entender o documentário mais sincero da carreira do quarteto de Liverpool.
Antes de entrarmos nos méritos de produção e conteúdo do vídeo vamos relembrar o lançamento do álbum Let It Be em 1970, que tinha o nome original de Get Back. Ele foi gravado durante alguns meses do ano de 1969 mas devido a problemas de produção e desavenças com o então produtor de som Phil Spector estas gravações ficaram guardadas. John Lennon já havia anunciado que queria sair do grupo e George Harrison estava extremamente insatisfeito e tenso, especial com Paul McCartney que vivia dizendo-lhe o que fazer. Tal feito fez com que Harrison deixasse o grupo por um período de tempo, fazendo-o retornar com o talentoso tecladista Billy Preston para algumas canções. Como uma forma de terminar a carreira bem com os fãs e também com o mercado, a banda resolveu se reunir por uma última vez para gravar um álbum novamente com o produtor George Martin e então nasceu Abbey Road, favorito entre muitos beatlemaníacos. Durante este meio tempo o documentário Let It Be – na época também com o nome de Get Back – ia sendo filmado nas gravações e sessões de estúdio, muitas vezes sem o conhecimento da própria banda com câmeras escondidas para pegar momentos mágicos. Ou constrangedores.
Inicialmente Get Back seria televisionado mas os planos mudaram rapidamente e então, em 1970, saía o vídeo logo depois do álbum já com o nome de Let It Be. Foi o último lançamento oficial dos Beatles com material novo enquanto os quatro ainda estavam vivos e é muito interessante notar como ele foge totalmente de tudo que já foi feito em torno dos rapazes: enquanto todo documentário e aparição deles os mostrava como meninos alegres e geniais, desta vez tínhamos a crua realidade da insatisfação de alguns e vemos momentos que claramente ditavam a separação absoluta da banda. Dentre eles, claro, a presença constante de Yoko Ono em meio aos ensaios e momentos de criação da banda, o que incomodava a todos.
Originalmente as filmagens editadas somavam mais de duas horas mas muita coisa acabou sendo tirada, em especial as brigas, a presença incômoda de Yoko e outros detalhes complicados da convivência desgastada do quarteto. Mesmo que o filme lançado tenha ficado com apenas 80 minutos, ainda há cenas que mostravam o clima quase depressivo dos quatro. Dentre os acontecimentos de maior destaque está a discussão de McCartney e Harrison. O guitarrista, insatisfeito com o quanto Paul lhe irritava dizendo o que devia fazer na música, acabou falando: “Eu vou tocar o que você quiser que eu toque, ou então nem toco nada se você não quiser. O que quer que lhe deixe satisfeito eu faço”. O único beatle realmente tranquilo e que não se envolvia nas discussões – ele até compõe a música Octopus Garden e tira risos de Harrison com a letra da canção – era Ringo Starr. A situação só foi ficar menos tensa com a presença de Billy Preston, que trouxe não apenas um clima mais focado para os compositores como também acrescentou muito ao que eles estavam preparando. Foi a única vez na história que um lançamento dos Beatles ganhou o nome de um convidado: The Beatles with Billy Preston.
Ao final do filme temos a tão famosa apresentação no topo do prédio dos estúdios Abbey Road, que ficou popularmente conhecida como The Rooftop Concert. Feito de forma secreta foi a última vez que o grupo se apresentou junto, o que durou cerca de 1 hora e travou o centro de Londres em pleno horário de almoço já que todos iam parando para vê-los tocando do alto – alguns até subiam os prédios por escadas para vê-los de perto. Preston estava com eles. Mesmo do show algumas cenas foram cortadas, eliminando as canções Let It Be e The Long and Winding Road. Obviamente a polícia aparece e pede que o grupo pare de tocar devido ao caos causado na cidade. Em meio as cenas da apresentação algumas pessoas na rua dão depoimentos e elas ficam ensandecidas com o fato dos Beatles estarem tocando ao vivo novamente. Mal imaginavam que era a última vez.
Aqui também vale um pouco de história. O famigerado The White Album teve sessões muito estressantes de gravação e McCartney sugeriu que o próximo álbum tivesse composições que fossem possíveis de se tocar ao vivo pelos quatro membros – relembrando, desde Revolver a banda utilizada overdubs e uma quantidade grande de instrumentos e experimentações em estúdio que ao vivo era impossível de se reproduzir. O local de escolha para o show de volta deles aos palcos foi discutido muitas vezes, sendo que finalmente optaram por algo inusitado e surpreendente.
A recepção do filme foi boa, não apenas por críticos de cinema mas principalmente pelos fãs da banda. Mesmo que partes mais sinistras das tensões entre eles tenham sido arrancadas ainda é possível ter um contato bastante sincero com os últimos dias que o quarteto passou junto. Com tanta coisa cortada do projeto é claro que a curiosidade dos fãs permanece em alta até hoje. Porém Starr e McCartney já se pronunciaram publicamente a respeito da insatisfação de um lançamento com as tais cenas cortadas e vêm barrando a coisa toda desde então. É muito possível que quanto eles se forem o material acabe sendo liberado, pois no fim das contas todo mundo sabe das brigas que eles tiveram, só faltam os detalhes. Cenas como a supracitada de Harrison vs McCartney e também a deste último explicando várias coisas sobre o filme para Lennon enquanto este simplesmente parecia que ia morrer de tédio ouvindo a voz de Paul ficaram marcadas.
Let It Be merece ser visto não apenas por beatlemaníacos mas também por curiosos e admiradores de boa música. É um documentário das últimas semanas de vida da maior banda que a música mundial já teve e o vídeo já está tão eternizado quanto eles próprios.
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