Em 16 de maio de 1966 era lançado o disco “Pet Sounds” dos Beach Boys, uma das mais belas obras da música pop mundial, que elevou a banda de surf music californiana a um outro patamar artístico. Era 1965. Brian Wilson, fundador, baixista, tecladista e vocalista adicional, se mostrava incomodado com o fato de o conjunto, formado com seus irmãos Carl (guitarra líder e vocal) e Dennis Wilson (bateria), o primo Mike Love (vocal) e o amigo de infância Alan Jardine (guitarra de base e vocal), ser conhecido apenas como aqueles quatro garotos que fazem uma música de melodias saborosas sobre temas como garotas, praia e surf.
Era preciso ir além, mas como? Brian acabara de ouvir o álbum “Rubber Soul” dos Beatles, um divisor de águas na carreira do quarteto de Liverpool, pois deixava para trás a chamada “fase ingênua” e dava um passo para a segunda metade da carreira do grupo, muito mais ambicioso artisticamente. Ouvindo as harmonias perfeitas, que se valiam de sobreposições vocais, e uso inventivo de instrumentos como a cítara, Wilson decidiu que iria produzir uma obra que superasse não só tudo o que tinha feito até então, mas também o disco dos Beatles.
Vale lembrar que, nos anos 1960, os rivais do quarteto de Liverpool não eram os Rolling Stones e sim os Beach Boys, que eram uma espécie de resposta americana à british invasion. Era, na verdade, uma rivalidade sadia, uma vez que havia uma admiração mútua entre o quarteto de Liverpool e os rapazes da praia da Califórnia. Brian decidiu abandonar a corrente turnê da banda, em dezembro de 1964, não participando, inclusive, da etapa japonesa que havia sido marcada, e quedou-se nos EUA compondo.
“Em dezembro de 1965 eu ouvi o álbum Rubber Soul dos Beatles. Aquilo foi definitivamente um desafio para mim. Eu vi que toda a edição era artisticamente interessante e estimulante. Eu imediatamente fui trabalhar nas canções para Pet Sounds.” Brian Wilson
Quando chegou ao estúdio, as músicas estavam praticamente concebidas, mas foi ali que se iniciou a alquimia. Ele não só compôs como arranjou e produziu o álbum, e as sessões foram de janeiro a abril de 1966. A maioria das sessões foram realizadas na Western Studio 3 da United Western Recorders, com algumas datas adicionais no Gold Star Studios e Sunset Sound Recorders. Alguns dos vocais foram gravados na CBS Columbia Square, porque era a única instalação em Los Angeles com um gravador de “8 tracks”. A sessão de overdubbing vocal definitiva do álbum ocorreu em 13 de abril de 1966. O álbum foi mixado três dias depois em uma única sessão de nove horas. A icônica capa teve a sessão de fotos realizada no zoológico de San Diego por George Jerman.
Os músicos de estúdio eram extra-oficialmente chamado de The Wrecking Crew, uma equipe que costumava trabalhar com o produtor e compositor Phil Spector, de quem Brian sempre foi fã. A técnica de Spector, conhecida como Wall of Sound (parede sonora), serviu de referência para a concepção das músicas. Esse grupo de músicos teve de se adaptar a qualquer requisição do compositor que fosse surgindo no processo, e eram umas mais incomuns do que outras. Ao longo da gravação de “Pet Sounds”, Brian contou com uma variedade inusitada de itens para adicionar camadas às músicas que escrevera, além de ter criado toda a estrutura em sua cabeça. Desde uma garrafa d’água servindo de instrumento de percussão em ‘Caroline No’ e uma lata de Coca-Cola usada para o mesmo fim na faixa-título, passando por um sino de triciclo e buzina de bicicleta em ‘You Still Believe In Me’, até um sino de trenó em ‘God Only Knows’.
“Pet Sounds” foi moldado como uma pintura impressionista, criando sons para expressar emoções específicas. No estúdio, a criação de Brian tomava proporções cada vez maiores, as músicas iam ganhando sofisticação e complexidade sonora. A cada sessão, o músico ia acrescentando, propositalmente, novos elementos. Porém, a Capitol Records não estava muito contente com aquela pândega musical, queria um típico álbum dos Beach Boys. Quando os demais integrantes retornaram da turnê, já não havia quase nada a ser feito além de colocar as vozes, sob a regência de Brian. Tanto que para muitos, inclusive para os membros da banda na época, “Pet Sounds” é um disco solo de Brian Wilson, tendo o nome Beach Boys como empréstimo.
Quando chegou às lojas, Pet Sounds não foi um sucesso imeadiato nos EUA. Os fãs da banda estranharam a guinada sonora e os fãs de rock em geral, mergulhados na onda hippie e psicodélica, ainda associavam os Beach Boys à velha imagem das camisas listradas e músicas sobre praia, sol e garotas, o que era considerado frívolo demais para os jovens engajados em atos e manifestações por toda a América pelo fim da guerra do Vetnã. Já a crítica foi praticamente unânime quanto à excelência criativa do álbum, e com o passar dos anos era frequentemente incluído em listas de melhores discos de todos os tempos.
O êxito comercial viria somente com o single ‘Good Vibrations’, lançada 5 meses depois. A música foi iniciada durante as sessões de Pet Sounds, mas o intuito era lançá-la como single. Depois acabou integrando o álbum “Smiley Smile” de 1967. Ironicamente foi na Inglaterra, país dos Beatles, que “Pet Sounds” fora bem recebido pelo público, o que impulsionou o sucesso do álbum pelo mercado europeu.
Pet Sounds se constitui de 13 faixas distribuídas em 36 minutos. Abre com a magistral ‘Woudn’t It Be Nice’, uma das mais belas músicas pop já compostas, seguida da singela e harmoniosa ‘You Still Believe In Me’. A terceira faixa é a cadenciada ‘That’s Not Me’, que antecede o momento mais cândido do álbum ‘Don’t Talk (Put Your Head On My Shoulder)’, que traz um belíssimo trabalho com cordas e flauta, seguida de outro exemplar de artesanato pop, ‘Wating For The Day’ e da instrumental ‘Let’s Go For A While’, que funciona como uma espécie de interlúdio.
‘Sloop John B’ é a faixa anômala, pois é a única que Brian não escreveu. Trata-se de uma velha cantiga das Bahamas, incluída na coletânea de músicas folk de Carl Salsburg, mas a versão que influenciou diretamente a dos Beach Boys foi a do Kingston Trio, gravada em 1958 sob o nome ‘The Wreck Of The John B’. A ideia de incluir a música era de Jardine, Brian não era muito fã de folk, mas Jardine traduziu a música para o “conceito Beach Boy” e isso o convenceu.
A faixa seguinte, ‘God Only Knows’ é o ponto alto da obra, considerada a melhor música pop já escrita. Em entrevista à Goldmine em 2011, Brian disse: “Tony Asher e eu tentamos escrever algo bem espiritual. Ela (a faixa) tem uma melodia semelhante à canção ‘The Sound Of Music’. Tony veio com o título de ‘God Only Knows’. Eu estava com medo que eles (os executivos da gravadora) banissem a execução nas rádios por causa do título, mas eles não a proibiram”. É a primeira canção dos Beach Boys com Carl nos vocais, porque Brian achava que a voz do irmão soaria mais doce. A música teria inspirado até a ‘Here There And Everywhere’ dos Beatles.
A nona faixa, ‘I Know There’s An Answer’, se chamaria a princípio ‘Hang On To You Ego’ e essa versão alternativa pode ser encontrada como material extra de edições especiais do álbum. Ela mantém a coesão do lado B, junto com a grandiosa e ao mesmo tempo singela ‘Here Today’. ‘I Just Wasn’t Made For These Times’ é outra aula de gravação, e encaminha o álbum para o desfecho com a instrumental faixa-título e ‘Caroline No’, que, no final, traz latido de cães e um trem em alta velocidade.
Apesar de não haver um consenso sobre o significado das músicas do álbum, a versão quase oficial atribui ao disco um caráter conceitual em que seria uma jornada de Brian em busca do amor e da aceitação.‘Wouldn’t It Be Nice’ seria e início e a esperança em uma relação; ‘Waiting For The Day’, a constatação de que tal vínculo é imperfeito; em ‘God Only Knows’, ameniza sua angústia se apoiando na crença de que tudo está nas mãos de Deus; busca uma solução em ‘I Know There’s Na Answer’; se lastima pela tênue natureza do amor em ‘Here Today’; aceita ser uma anomalia humana em ‘I Just Wasn’t Made For These Day’ e ‘Caroline No’ seria a perda da inocência. Porém, do ponto de vista de Tony Asher, coautor de oito das 13 faixas, não houve um conceito premeditado para as músicas, e o resultado final foi um repertório de canções que refletem essas questões tão significantes da vida de um jovem adulto.
Com Pet Sounds, Brian Wilson deixou uma marca indelével no paneteão dos grandes na História da música, tendo sua relevância reconhecida até por Paul McCartney, autor das músicas de Rubber Soul que mais o inspiraram. O próprio Paul afirma que o trabalho dos Beach Boys é o melhor disco pop já feito e disse: “ninguém instruído musicalmente até ter ouvido Pet Sounds…É uma gravação clássica imbatível em várias maneiras.” O disco também arrancou elogios de George Martin, o produtor e mentor dos Beatles: “Sem Pet Sounds, Sgt. Pepper’s nunca teria acontecido. … ‘Pepper’s’ foi uma tentativa de igualar a Pet Sounds”, Declarou o recém-falecido produtor e maestro no box comemorativo de 30 anos do álbum, “Pet Sounds Sessions”, que reunia as gravações das sessões e outtakes do disco.
Depois de tentar superar os Beatles, Brian Wilson quis superar a si mesmo com o projeto Smile, que ficou inacabado, pois Mike Love o considerou difícil demais para ser assimilado pelo público e lançado como um trabalho solo quase quarenta anos depois, em 2004. Um dos motivos da desistência do projeto teria sido o fato de Brian ter ouvido ‘Strawberry Fields’ e constatado que os Beatles venceram a guerra da superação na música pop. Os abusos de LSD pelo compositor também minaram a conclusão do trabalho, o que o levou a agravar sua diagnosticada esquizofrenia ficando anos recluso e deitado em sua cama.
Na comemoração dos 50 anos do álbum haverá (claro) um relançamento de luxo e até uma mini turnê com Brian Wilson executando o clássico na íntegra pela última vez (leia mais detalhes aqui). Pet Sounds é se um disco que merece ser sempre revisitado, pois a cada audição um novo detalhe é descoberto. Não importa o formato; vinil, CD, streaming, DVD/Blu Ray-Audio, mono, estereo ou multicanais, é uma obra obrigatória.
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