As relações que começam com estranhamento sempre evoluem para relacionamentos inesquecíveis, que mudam a vida da gente, e família é o grupo de pessoas unidas por amor e cuidado, não por laços de sangue. Estas lições já foram ensinadas por muitos filmes, de modo que Rosa e Momo, novo filme da Netflix, poderia parecer só mais um entre tantos no mundo. Mas ele não é, graças à presença da diva Sophia Loren, que estava longe da tela grande desde 2009, mas foi convencida por seu filho Edoardo Ponti, diretor de Rosa e Momo, a voltar para contar essa história.
Mohamed, ou Momo (Ibrahima Gueye), é um garoto senegalês órfão de 12 anos. Quem tem sua guarda é o Dr. Coen (Renato Carpentieri), mas ele é muito mais rebelde que as outras crianças de quem o médico cuida. Momo vive roubando pelas ruas, e sua mais recente vítima foi a ex-prostituta Rosa, que teve dois candelabros furtados por Momo. Quando Dr. Coen vê os objetos, obriga Momo a devolvê-los, pedir desculpas… e pede a Rosa que fique com Momo, já que ela atualmente cuida de outras duas crianças, Iosif e Babu, filhos de prostitutas e mais novos que Momo. Rosa aceita, mas só por dois meses e mediante pagamento.
No apartamento abaixo de Rosa, vive Lola (Abril Zamora), uma transexual espanhola e ex-campeã de boxe, respeitada pelo bairro todo porque, segundo Momo, “quem não a respeitasse, ela quebrava a cara”. Por falar em bairro, é na vizinhança que Momo consegue um trabalho extraoficial, como traficante, e um oficial, como ajudante na loja do comerciante muçulmano Halim (Babak Karimi), que leva a cabo um projeto pessoal de restaurar um tapete com um leão bordado. Em atrito com a maioria destes personagens, Momo descobrirá que Rosa e ele têm muito em comum.
O título original é “La Vita Davanti a Sé”, ou A Vida Pela Frente, que também é o nome do livro de Romain Gary, publicado em 1975, que deu origem ao filme. Em 1977, a história foi adaptada para o cinema com o título Madame Rosa – A Vida à Sua Frente, filme protagonizado por Simone Signoret. Nesta adaptação, Rosa cuida de um menino vindo da Algeria, e não do Senegal, e há outros personagens que não aparecem na nova versão, como o pai de Momo e uma editora de cinema. Considerando estas mudanças, podemos dizer que Edoardo Ponti, Ugo Chiti e Fabio Natale, responsáveis pelo roteiro, decidiram jogar luz sobre a vida de outros excluídos na Europa, como imigrantes negros e transexuais.
Sophia Loren, aos 86 anos, tem ainda nos olhos o principal ingrediente para sua atuação. Uma crítica menciona que, para Rosa, cada ruga e linha de expressão em seu rosto conta uma história, muitas delas sobre os horrores que ela viveu. Por isso, é acertado trazer Sophia despida da aura de diva, porém ainda carismática e expressiva. Embora Sophia seja o destaque do filme, o estreante Ibrahima Gueye não fica longe. O menino se sai muito bem em uma cena que demanda fragilidade, depois de tanto tempo com Momo tentando mostrar que é forte. Destaca-se também a escolha de Abril Zamora, uma atriz realmente trans interpretando uma personagem trans que não é um desfile de estereótipos.
É uma ótima decisão começar o filme por uma cena final, que não dá nenhum spoiler, e a partir daí narrar o ocorrido em flashback. Por causa disso, é até possível perdoar as partes previsíveis do enredo, que adicionam sim dramaticidade mas não causam surpresa. Mesmo com flashback, trata-se de uma narrativa convencional, e por poucas vezes com narração de Momo.
A história de imigrantes e o choque cultural e até mesmo religioso que ocorre com os africanos que chegam à Europa já é há alguns anos tema recorrente no cinema francês, em filmes como Samba (2014), Tudo o que nos Separa (2017) e Boas Intenções (2018). Sabemos, através do cinema, que a França é palco de conflitos diversos, gerais e particulares, entre imigrantes e locais. Rosa e Momo mostra conflitos numa cidade litorânea da Itália, conflitos estes causados pelas muitas diferenças entre os protagonistas: diferença de idade, de religião (Rosa é judia e Momo muçulmano), de origem. A mensagem é que não é o que nos separa que nos define, mas o que nos aproxima – uma mensagem transmitida através de excelentes performances.