NO PIREX: um espetáculo ambidestro, equilibrista e absurdo – Ambrosia

NO PIREX: um espetáculo ambidestro, equilibrista e absurdo

Eis que temos uma peça de teatro cheia de energia, bom humor, deboche e uma estética grotesca que faz com que o feio e o nojento carreguem certa dose de beleza, despertando, no espectador, sensações diversas: na sessão a que fui assistir, ouvia-se na plateia divertidas expressões como “ai, que nervoso” quando os atores circulavam com torres de pratos ou xícaras na suposta iminência de deixarem cair e quebrar tudo (pires, copos, taças, pratos, que, além disso, voavam, sem timidez, para cá e para lá e para acolá, sem desvio da trajetória, projéteis delicados que não acertavam absolutamente ninguém e que cujo caminho aéreo inesperado causava espanto. Muitíssimo espanto).

Esse é o tipo de dramaturgia que dá gosto de ver. É o oposto de um teatro preguiçoso, que, eventualmente, com o pretexto de ser minimalista (ou pobre, se quiser se valer equivocadamente de teoria teatral), acaba por não encantar de tão pouco trabalho que demanda.
No Pirex, com direção de Eid Ribeiro e dramaturgia assinada por ele e pelo Grupo de Teatro Armatrux, de Belo Horizonte, é o contrário: há trabalho, há riqueza de detalhes e expressões corporais, faciais e onomatopeias, há certa hipnose que, enfim, pode suscitar o processo de encantamento nos primeiros momentos, sem que, ao longo da peça, se deixe a peteca cair.
A equipe de atores, Cristiano Araújo, Eduardo Machado, Paula Manata, Raquel Pedras e Tina Dias, além de Fábio Furtado como ator convidado, está sensacional, nessa que é uma interessantíssima coreografia de cuspes, tragadas de cigarro, caminhadas trôpegas, itinerários bambos e sustos que não vou contar mais para não dar spoiler logo no segundo parágrafo. O que posso dizer, em duas palavras, é que labaredas acontecem.

Os figurinos e o cenário de Eduardo Félix são impecáveis e fazem com que nós, espectadores, nos desloquemos para uma dimensão outra, onde tudo é possível, até mesmo desafiar a lei da gravidade. A trilha sonora assinada pelo polivalente Eid Ribeiro também ocasiona belíssimos momentos em que o lirismo arranca, a qualquer custo, um espaço em meio ao grotesco e ao absurdo. É o caso da dança entre dois serviçais, uma das joias dramatúrgicas desse No Pirex.
O que temos, enfim, é uma mulher insuportável e três criados (no sentido péssimo da palavra), além de um velho de estranhíssimos hábitos alimentares. Uma família triste, solitária e de mal com a vida. Os serviçais devem fazer a comida, ter o aval quanto às carnes, servir as refeições, servir o café, e, para estar em um trabalho intragável, só mesmo com muitas tragadas no cigarro e tantas outras talagadas nas bebidas que a patroa ou matriarca entorna.
Tudo acontece nesse espaço de sala de jantar, próximo à cozinha fumegante, e o que considero uma qualidade da peça, um mérito digno de nota, é que evoca referências de filmes que, não sei se são as do grupo, mas certamente vieram à minha cabeça quando vi e me deram vontade de rever filmes e de ir ao cinema. A vontade de cinema não aconteceu por ser a dramaturgia ruim, muito pelo contrário: No pirex é uma peça inspiradora no amplo sentido das expressões artísticas.

E as referências que me vieram à cabeça foram Charles Chaplin, os irmãos Marx (Groucho, Chico e Harpo, e não Karl, o bom velhinho), os filmes O Baile e O Jantar (de Ettore Scola, produções de 1983 e 1996, respectivamente), e algumas cenas de Dançando no Escuro, de Lars von Trier, e Pão e Rosas, de Ken Loach. Nesses 2 últimos casos, refiro-me às cenas em que a dança no ambiente laboral desgastante e horrível é o que pode impulsionar o prazer e até dar sentido ao trabalho. Transgredir no trabalho é fazer dele um terreno de sentidos para que possa haver alguma produtividade que escape à lógica produtivista de nossos tempos atuais, para que o trabalhar, enfim, ganhe condições de possibilidade. Algumas clínicas do trabalho falam sobre isso e, de modo caricato e intensificado, é o que encontramos em No Pirex.
Por outro lado, em O Baile e O jantar, tudo acontece em ambientes únicos e dramas se entrelaçam. No primeiro, são as expressões dos atores, a comunicação não-verbal entre os personagens e o movimento corporal que revelam sentimentos os mais diversos, ao passo que, em O Jantar, é o ambiente de um salão de restaurante, onde dramas paralelos acontecem, que surge a analogia com a peça de Eid Ribeiro e do Grupo Armatrux. Assim como em No Pirex, guardadíssimas as devidas proporções, há confusões paralelas acontecendo no ambiente da sala de jantar, e não há diálogos, como em O Baile, apenas muxoxos, gritinhos, suspiros, soluços, ânsias de vômito cheias de sonoridade.
Ao final de tudo, ainda ficamos achando que algo pode acontecer, que aqueles serviçais ensandecidos ainda vão aprontar alguma pelas nossas costas, que um prato pode cair sobre a nossa cabeça antes de sairmos do teatro. As provocações não acabam nem mesmo quando a peça termina e fica difícil deixar o teatro sem olhar para trás.

Parece, de fato, que os 27 anos de pesquisa teatral do Grupo Armatrux, de Belo Horizonte, trouxe excelentes resultados. Vê-se pela qualidade evidente do espetáculo em cartaz no CCBB-RJ. A peça reforça a certeza de que, nos momentos mais difíceis da vida de um país, só a arte salva. E é exatamente por isso e pelo grande trabalho teatral realizado pela equipe que, encantados, agradecemos de pé.

SERVIÇO

“No Pirex”
Temporada: de 16 de novembro a 17 de dezembro – de sexta a segunda, às 19h.
Local: CCBB Rio – Teatro I (Rua Primeiro de Março, 66 – Centro).
Informações: 3808-2020.
Ingressos: R$ 30 (inteira) e R$ 15 (meia).
Capacidade: 172 lugares. Gênero: Cômico absurdo.
Duração: 60 min. Classificação indicativa: 12 anos
SAC 0800 729 0722 – Ouvidoria BB 0800 729 5678
Deficientes Auditivos ou de Fala 0800 729 0088

FICHA TÉCNICA

Direção: Eid Ribeiro
Dramaturgia: Eid Ribeiro e Grupo de Teatro Armatrux
Atores: Cristiano Araújo, Eduardo Machado, Paula Manata, Raquel Pedras, Fábio Furtado e Tina Dias
Cenários e figurinos: Eduardo Félix
Trilha sonora: Eid Ribeiro
Design de luz: Bruno Magalhães e Bruno Cerezolli
Fotografia: Bruno Magalhães/Agência Nitro
Assistência de direção: Raquel Pedras e Paula Manata
Produção Executiva: Luiz Fernando Vitral
Realização: Grupo de Teatro Armatrux
Fotos: Bruno Magalhães

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