O questionamento entre o real e o fictício e outras fronteiras no espetáculo 'Fauna' – Ambrosia

O questionamento entre o real e o fictício e outras fronteiras no espetáculo ‘Fauna’

O enredo de Fauna parece começar amarrado. Atenção ao verbo ‘parecer’. Parece que será um roteiro mais do mesmo, um bom momento de distração, talvez, com muita qualidade, trazendo uma espécie de quase metalinguagem ao tratar de um grupo que vai montar um filme sobre a vida de um personagem real. Atenção agora ao ‘talvez’ da oração anterior. O grupo, quatro personagens com diferentes graus de implicação com a história a ser contada, debruça-se sobre cenas, falas e a história do personagem real. O enredo sobre o qual o grupo trabalha, no processo doloroso de virar produto acabado, comporta elementos de realidade e ficção que, enquanto ainda processo, vão sendo exaustivamente esmiuçados. Realidade e ficção que possivelmente não precisem ser tão bem marcadas, não exijam a obrigatoriedade de que sejam bem discernidas uma da outra.

Fauna é a personagem retratada, cuja história está sendo oferecida à atriz e ao cineasta pelos filhos, que ainda moram na casa e na fazenda onde ela morou quando viva. Fauna é a personagem que dá nome ao espetáculo, trazendo uma ambiguidade que não pode passar despercebida. Quanto à tal ambiguidade, apenas a mencionarei. A peça, em que trama e personagens pareciam começar um pouco mais engessados, segue em um crescendo de complexidade e diluição de fronteiras entre categorias e conceitos muito apropriada à própria indagação sobre a delimitação entre o real e o fictício. Nesse ponto, à guisa de diálogo com outras obras culturais das quais o público pode usufruir, pode-se remeter à temática do drama de Fauna ao filme “O cidadão ilustre”, de Gastón Duprat e Mariano Cohn, em cartaz na cidade do Rio, que traz exatamente a questão entre o real e o fictício em uma obra de arte, com a diferença de que o meio em questão é o literário, e a autoficção, gênero no cerne das polêmicas e do fazer literário atual, é o veículo que propicia a obra.

Fauna, com acertadíssima direção de Erika Mader (que também interpreta Julia, a atriz) e Marcelo Grabowsky trabalha as questões das fronteiras entre o real e o fictício, entre os gêneros e os desejos, entre os papeis e as funções, através da problemática de seus personagens no fazer do documentário/filme de ficção. No palco, Erika Mader, Eduardo Moscovis, Erom Cordeiro e Kelzy Ecard (esta última com suas tiradas de humor ácido e irônico), interpretam esses personagens que, a princípio, têm seus lugares e suas funções bem delimitados e seguros, e suas atribuições muito bem definidas: um dirige, a outra interpreta, a outra conta as histórias de Fauna e o outro, um pouco mais arisco e misterioso, conta algumas outras histórias. Um é o experiente cineasta, outra é a atriz novata, a terceira é a mulher experiente e forte, inabalável em suas certezas, o outro é o homem bruto e isolado, desprovido de sensibilidade. Entretanto, a trama vai ficando mais complexa e embolada, no sentido literal do termo, com nós difíceis de soltar, e, paralelamente, vai também desarranjando todos os a prioris que montavam um perfil apressado dos personagens em questão.

Fauna é uma mulher misteriosa que se vestia de homem, sendo esta última característica o que vai prevalecer na apropriação que Júlia, a atriz, fará da personagem retratada. Ela passa a vestir as roupas da personagem, a usar artifícios de sedução da forma como imagina que a personagem talvez seduzisse, ela está na casa da personagem, circulando por seus cômodos e entre seus objetos. Sua apropriação de Fauna questiona toda a feminilidade e as obrigações de gênero. No que se pode considerar o auge do espetáculo e o momento de maior qualidade do texto, Julia expressa o desejo de poder ser pai do próprio filho. Ela se pergunta como emprestar seu corpo a diversas funções diferentes, como doá-lo a um outro ser, como conciliar a maternidade e o ofício de atriz, como não ser exclusivo de apenas uma obrigação maior, por isso insiste que quer ser pai, quer ter um filho e poder estar longe fisicamente dele. Os limites da sexualidade e do desejo também são mexidos e embaralhados no decorrer da trama. O texto, de Romina Paula e tradução de Hugo Mader, é hábil em deslindar as questões levantadas por Julia e vividas pelos demais personagens.

O belíssimo cenário de Fernando Mello da Costa, por sua vez, parece ir traduzindo o desarranjo de papéis, funções e lugares dos personagens à medida que o drama avança. Inicialmente, um retângulo ao centro, onde se dá a cena, e a palha que preenche todo o entorno, assinalando o ambiente rústico e rural no qual o drama se passa. Mas à medida que os personagens vão se misturando entre si e com os personagens citados, e à medida também em que os desejos escapolem das celas em que estão bem contidos e dos formatos normatizados que se espera deles, tudo vira palha no cenário, não há mais separação entre uma organização prévia e segura (supostamente representada pelo centro e pelo retângulo iniciais) e a desorganização que há ao redor. Tudo se emaranha e, com diz o personagem de Eduardo Moscovis à dada altura, não importa mais se o que se busca retratar é realidade ou ficção. Isso é o que o menos importa, na verdade.

O espetáculo, em cartaz no Centro Cultural da Justiça Federal, fica em cartaz até 16 de julho. Confira detalhes sobre horários e preços aqui.

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