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Discutir sobre o futuro das IAs não pode ser um privilégio para poucos

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Por Rodrigo Goldacker*

Em fevereiro de 2022, observando a fase de divulgação de outra das tendências cibernéticas que surgiram do nada e foram a lugar nenhum, decidi escrever sobre onde as tendências digitais vão para nascer – e para morrer. O objeto em questão na época eram os ditos NFTs, contratos em blockchain que passaram de uma discussão técnica para um produto especulativo. Mas quando me perguntaram sobre o que o futuro desse objeto seria, eu dizia que não importava: para além do exemplo em específico, fato é que a mesma dinâmica estava produzindo já naquele instante o próximo discurso da moda para a estação seguinte das promessas digitais.

Não deu outra. Em 2022 eu olhava para o “começo do fim” para os NFTs com sua vulgarização até os cafundós do Brasil e a subsequente crise que derreteu seu valor especulativo. Enquanto isso, surgia silenciosamente essa nova tecnologia, a das tais inteligências artificiais generativas, que tomaria o mundo nos anos seguintes – e da qual eu mesmo me vi obrigado a ser um dos early adopters tão longo o uso se popularizou minimamente.

Quando participamos de uma conversa relevante?

A primeira vez que comecei a topar com essa discussão foi, muito curiosamente, via os algoritmos do ex-Twitter, hoje X. Lembro nitidamente das primeiras páginas que geravam imagens absurdas a partir de comandos. A evolução da tecnologia era notável inclusive na crescente qualidade dos memes desse tipo de perfil – e essas melhorias versão a versão estavam presentes antes do assunto estourar na Internet como um todo e nos meios de comunicação tradicionais como jornais.

Antes disso, essas conversas sobre as novas tecnologias partiram de fóruns online. Hoje, quando se diz que algo como a inteligência artificial foi “desenvolvida pela OpenAI”, isso pode dar a entender que esse desenvolvimento aconteceu como um segredo de Estado, mas não é o caso. Apesar da OpenAI ter sido a primeira a formalizar certos protocolos e a formatar produtos mais estabilizados e acessíveis, as discussões técnicas sobre inteligência artificial generativa aconteceram de maneira bastante aberta e colaborativa em comunidades online de entusiastas. Daquela gente técnica mesmo, que chega muito antes dos marketeiros e vendedores.

Ser aberto não significa que é acessível para todo mundo

Muito desse conteúdo colaborativo está aberto até hoje nos fóruns da própria OpenAI e em outros lugares como comunidades do GitHub e do Reddit. Há também uma extensa produção acadêmica a respeito, feita anos e anos antes da primeira versão do ChatGPT. Mas se você pode saber disso tudo hoje, fica a questão: por que não sabia antes?

Era essa dinâmica que meu livro NFTs, influencers e a música […|] do artista [.,.]tratava ao discutir exemplos como os NFTs, a popularização dos influencers e a presença na Internet de artistas com nomes inusitados como o alterego de um DJ que atende por ⣎⡇ꉺლ༽இ•̛)ྀ◞ ༎ຶ ༽ৣৢ؞ৢ؞ؖ ꉺლ. De lá pra cá, os objetos seguiram mudando no frenesi de sempre, mas seguiu idêntica essa jornada: novas tendências surgem em grupos pequenos, popularizam-se primeiro na mídia técnica, depois expandem para a grande mídia quando são suficientemente relevantes e, finalmente, caem na mão de nós todos até saturarem. Nesse processo, comunidades criam “regras de panelinha”, mais ou menos no sentido de instauração de um campo como proposto pelo filósofo frances Bourdieu, e essas regras costumam envolver algumas estratégias de anti-acessibilidade (no que chamei de “anti-UX”) para filtrar e impedir o acesso dos indesejados.

Fluência digital é uma modalidade de poder

Portanto, é tanto uma verdade quanto uma visão limitada dizer que se trata de uma comunidade “aberta” aquele grupo de entusiastas que produziu as inteligências artificiais primitivas. É verdade que os fóruns estavam ali disponíveis para qualquer um que tivesse os links, e que os artigos foram publicados por grandes centros acadêmicos e poderiam ser conferidos por qualquer um em qualquer lugar do mundo nas suas versões digitais. Mas quantas pessoas tinham ciência disso? Quantas delas entendem o inglês, que é a língua em que majoritariamente se discute tudo isso? E quantas entendem o jargão técnico da tecnologia, da matemática, dos estudos profundos sobre linguagem, banco de dados, estatística e linguagem de programação? Quantos entendem como navegar esses assuntos pouco amigáveis nas interfaces pouco amigáveis de fóruns de discussão voltados a programadores, acadêmicos e obcecados por tecnologia?

É por trás dessas barreiras de inacessibilidade que se constroem as hierarquias de acesso à informação na Internet – inclusive com os algoritmos que nos julgam em todos os rastros que possuem a nosso respeito para decidir quando consideram apropriado ou não nos mostrar uma discussão. Quando eu comecei a encontrar com memes gerados por inteligência artificial na minha timeline do X (ex-Twitter) nos meses finais de 2022, foi porque uma tecnologia algorítmica me julgou a partir dos meus comportamentos digitais para decidir que era naquele momento em específico que era apropriado que eu passasse a participar dessas discussões.

Esse acesso é, à sua própria maneira, uma formulação do poder. Quem participa antes das conversas, ou até mesmo quem é convidado mais cedo para participar por essa conveniência algorítmica, pode participar mais da tomada de decisão ao redor daquela discussão toda. Se artistas, designers, sindicatos, conhecedores de leis de copyright e pessoas interessadas no futuro do mercado de trabalho fossem convidadas a participar mais cedo das discussões sobre IAs, os produtos que teríamos hoje seriam completamente diferentes. O fato de que investidores de risco e as elites californianas serem as primeiras a saber desse tópico significa que são esses grupos que podem moldar o futuro dessa tecnologia dali para frente. O desrespeito ao copyright por parte das empresas de IA é, certamente, uma decisão deliberada para atender a um dos seus grupos de interesse – esse dos investidores buscando lucros especulativos de curto, médio e longo prazo. Pessoas que não necessariamente se importam, ou possuem como prioridade, os direitos legais de artistas e criadores.

Permitir que mais grupos participem transforma as prioridades do desenvolvimento

Acesso digital às conversas relevantes o mais cedo possível é, portanto, uma necessidade de qualquer grupo que deseje defender seus interesses e direitos. E porque esse acesso é restrito e delineado por questões de filtragem algorítmica e acessibilidade digital, é importante perceber criticamente como essas questões nos hierarquizam. Se sabemos sobre IAs depois de todo mundo e isso afeta diretamente nossos empregos e nosso futuro, é importante criticar as escolhas que podem ter sido feitas por nós enquanto nos impediram de participar.

O futuro da tecnologia é um problema técnico, também, mas é tanto quanto um problema de conscientização popular. Antes de exigir das pessoas que ganhem mais fluência digital porque sim, ou só porque será lucrativo aos seus patrões, é importante dar essa perspectiva de que mais fluência digital é também uma questão de organização social e defesa dos próprios interesses. Sem essa consciência, estamos vulneráveis a tudo: a todos os arbítrios do Musk em quando ele vai nos decidir mostrar algo com seus algoritmos, e também submissos e vitimados por todas as decisões importantes que nos afetam que foram tomadas em nossa ausência.

Era importante em 2023, quando escrevi meu livrinho sobre NFTs, conscientizar as pessoas para que entendam como a tecnologia vai afetar suas vidas e como podem participar dessa conversa para se protegerem. E hoje com a acelerada guinada das IAs e o risco que isso representa para todas as profissões criativas e a saúde da Internet como um todo, é mais importante ainda.

Não é sobre proibir o desenvolvimento tecnológico. Muito pelo contrário. É sobre participar dele ativamente – e sobre garantir que mais gente participe dele para além dos mesmos gênios técnicos e investidores engomadinhos de sempre. Se a tecnologia for suficientemente relevante para afetar a nós todos, que pelo menos seja discutida por nós todos no caminho para sua implementação.

*Rodrigo Goldacker vive de palavras. Trabalha como redator há sete anos e é Mestre em Comunicação pela Faculdade Cásper Líbero. Já publicou dois romances pela Amazon (com um deles, “Eu Só Existo às Terças-feiras”, sendo um dos cinco finalistas do primeiro Prêmio Amazon de Literatura Jovem) e mantém um blog no Medium onde escreve um pouco de tudo. Pela editora artesanal Castrês, publicou em formato impresso NFTs, influencers e a música ࿃ूੂ࿃[…] do do artist […]. Tem 29 anos, mora em São Paulo e no tempo livre gosta de fofocar com sua esposa, passear com sua cachorra Sunna e de sentar na varanda para ler.

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