Resenha de Vampiro: o Réquiem (DEVWW25000, 304 páginas, R$ 84,50)

Não é fácil escrever uma resenha sobre um livro lançado há mais de 5 anos (sim, já faz isso tudo de tempo!) e que já conta com uma vasta linha de suplementos, incluindo até mesmo uma inusitada ambientação nos anos 80 e uma linha histórica ambientada na Roma Antiga. Ainda mais porque este livro é a última e polêmica edição de um jogo que marcou época e conquistou uma legião de fãs, que hoje se dividem em suas opiniões sobre a encarnação atual – ainda chamada de “o novo Vampiro” por muitos, mesmo depois de tanto tempo.
Tendo isso em mente, talvez seja proveitoso fazer não um resumo das informações contidas no livro básico, mas sim uma esquematização de como Vampiro: o Réquiem retrabalhou alguns dos pressupostos de seu antecessor e criou, a partir das mesmas fontes, uma nova estrutura que deu outra direção ao cenário. A comparação com Vampiro: a Máscara é inevitável; ao invés de rejeitá-la, prefiro usá-la para ilustrar de forma mais clara as mudanças trazidas por esta edição.
Um jogo gótico contemporâneo (ou “onde foi parar o horror pessoal?”)
Enquanto Vampiro: a Máscara se definia a partir da ideia de ser um jogo de “horror pessoal”, Vampiro: o Réquiem propõe como mote o conceito de um jogo “gótico contemporâneo”. Em parte, a substituição decorre das enormes ambiguidades contidas na expressão “horror pessoal”, que levavam a discussões bizantinas entre os jogadores, fãs e críticos a respeito de como o jogo deveria funcionar na prática. No conteúdo, porém, a concepção central do jogo mudou muito pouco, e por isso a primeira coisa que pode ser dita sobre o Réquiem é que ele não se propõe a ser um jogo radicalmente diferente de seu predecessor. Na verdade, talvez seja mais proveitoso encará-lo como um desenvolvimento possivelmente mais coeso e sólido da mesma proposta.
Assim como o ocorria com o controvertido horror pessoal, o mote central que a expressão “gótico contemporâneo” propõe é a exploração da moralidade através da morbidez própria à metáfora do vampirismo. Os jogadores deverão interpretar vampiros, seres obrigados a conviver intimamente com instintos monstruosos e com a necessidade de matar enquanto tentam de alguma forma salvaguardar sua moralidade. Sob essa visão “poética”, o vampirismo aparece como metáfora da corrupção humana e de suas tendências macabras e sanguinárias. Os vampiros, por precisarem se alimentar de sangue majoritariamente humano (os animais são uma opção apenas para os mais jovens e fracos) possuem um conjunto de instintos de destruição e morte conhecido como a Fera. Contudo, como ainda estão apegados aos padrões de moralidade que conheceram quando humanos, tentam resistir a esses impulsos valendo-se de sua Humanidade, o que os leva sempre a tentar resistir àquilo que define sua condição. Contudo, com o passar do tempo, a Humanidade vai gradualmente cedendo terreno para a Fera, e o vampiro vai se tornando cada vez mais selvagem e brutal à medida que transcorrem décadas e mesmo séculos tratando os humanos como alimento. Por isso, os vampiros podem ser encarados como personagens essencialmente trágicos, obrigados a tentar resistir àquilo que os define no nível mais essencial. Além dessa concepção mórbida da subjetividade e da morte como parte indissociável da experiência da vida, a expressão “gótico contemporâneo” ainda aponta para uma ambientação decadente, moralmente corrompida e violenta, o que antes, na Máscara, era chamado de “punk-gótico”.
Até aqui, nada de essencialmente novo, portanto, em relação à Mascara. A diferença está muito menos nessa temática central do que nas formas através das quais ela é desenvolvida: Réquiem enfatiza o isolamento, o barbarismo e a xenofobia em graus muito mais elevados do que antes, o que acaba centrando os conflitos muito mais nos indivíduos e nas respostas particulares que eles darão aos acontecimentos e dilemas de suas condições excepcionais.
A escala regional (ou “essa cidade é da Camarilla ou do Sabá?”)
A maior parte das inovações do Réquiem pode ser resumida afirmando-se que o cenário tende a procurar resoluções para seus conflitos na escala local. Nada de seitas com enormes estruturas globais empenhadas em guerras e disputas por hegemonia travadas em escala intercontinental. Nada de imensas conspirações em busca da dominação mundial. Nada daqueles enredos envolvendo personagens icônicos dos quatro cantos do mundo, cujas consequências se fazem sentir em todas as regiões do globo e influenciam todas as tramas locais. Nada, portanto, de metaplot, como ficou convencionado chamar esse tipo de modelo narrativo empregado na antiga edição do Mundo das Trevas. A ausência de tramas globais e de um metaplot foi um dos pontos do Réquiem que mais decepcionaram os fãs da Máscara, que criticaram a ausência de personagens e organizações carismáticos como um defeito do livro. Talvez seja mais coerente, contudo, ver esse aspecto como parte de uma nova proposta narrativa.

Os enredos de Réquiem estão centrados na cidade, essencialmente. Os vampiros são retratados como criaturas extremamente territoriais e xenófobas, raras vezes abandonando seus refúgios urbanos para se aventurarem em outras regiões do globo. Os contatos entre as cidades são reduzidos, e na maior parte das vezes atravessados por desconfianças e medo de ambas as partes. O mundo é tratado como um lugar assustadoramente desconhecido, no qual você nunca terá o conforto de saber que, por ser um membro do Invictus, o aristocrático grupo dominante da sua cidade, vai ser bem recebido pelo príncipe daquela cidade do Leste Europeu para onde precisa ir. Quem disse que essa cidade terá um príncipe, em primeiro lugar? O jogo tenta se equilibrar entre as realidades particulares de cada vampiro e as formas mais ou menos abrangentes, mas sempre precárias, de convivência entre eles. A experiência de vida pessoal de cada vampiro é conhecida como o réquiem, enquanto a convivência entre os vampiros é chamada de Danse Macabre, e a interação entre ambos constitui o eixo dinâmico da proposta do jogo.
O territorialismo e a xenofobia estão radicados na própria natureza dos vampiros. Além de sua suscetibilidade à luz solar desmotivar viagens a lugares com condições de alojamento imprevisíveis, o sangue vampírico ainda conta com a Mácula do Predador, que desencadeia reações de agressividade e desconfiança mútuas toda vez que dois vampiros venham a se encontrar pela primeira vez. Sob essas condições, as viagens tornam-se empreendimentos arriscados, e a maior parte dos vampiros tende a preferir a segurança relativa de suas cidades e de seus territórios familiares. O resultado desse fechamento nas escalas locais não é limitante; pelo contrário, é um revigorante sopro de ar fresco à ambientação, permitindo pensar na autonomia e nas particularidades de cada cidade – ou até de cada bairro! –, o que dá ao cenário como um todo um grau de customização e flexibilidade que era impossível de se obter na Máscara.
Não existe nem mesmo uma forma padronizada de organização política das sociedades vampíricas. Esqueça o Príncipe – ou melhor, comece a pensá-lo como mais uma das figuras de uma galeria que inclui também o Presidente, o Arcebispo e outros possíveis títulos de autoridade. O livro apresenta três modelos de organização política: a “monarquia feudal” (comandada por um governante absoluto rodeado por uma corte de anciãos detentores de títulos), a “diretoria” (em que os assuntos da cidade são discutidos por um conselho de anciãos à semelhança de uma empresa) e a “diocese” (um modelo de governo que une leis temporais e leis religiosas). A particularização chega ainda mais longe com o conceito de “domínio tenurial”, que corresponde a uma parcela de uma cidade comandada por um regente ou ancião que pode instituir outras formas administrativas e políticas dentro de seu domínio.
Há, contudo, três “tradições” gerais que pautam o convívio entre os vampiros; e elas são gerais justamente porque são baseadas em características inatas, “fisológicas”. A primeira é a tradição da Máscara, que proíbe os vampiros de revelarem sua natureza aos humanos normais, e se baseia no fato de os vampiros nunca deixarem registros visuais claros de sua existência (por exemplo, as gravações de vídeo ficam borradas). A segunda é a tradição da Progênie, que considera cada novo vampiro como responsabilidade daquele que o criou, restringindo a criação indiscriminada de novos sanguessugas. Isso se baseia nas dificuldades inerentes ao processo de criação de novos vampiros, que o impedem de ser muito frequente. A última tradição é a do Amaranto, que proíbe os vampiros de consumirem completamente o sangue e a alma de outro vampiro. Ela se fundamenta no natural fortalecimento da Fera que ocorre sempre após esse ato. As tradições fornecem regras gerais e universais que permitem o funcionamento das sociedades vampíricas em todo o globo, enquanto as formas de governo locais irão variar decisivamente. Com isso, o jogo tenta um balanço entre tendências universais e desenvolvimentos concretos particulares e adaptáveis.
A história e a mitologia dos vampiros refletem esse enfoque local, restrito e desorientador. Ao contrário do que ocorria com o mito da criação dos vampiros por Caim na antiga edição, no Réquiem não existe uma mitologia oficial e verdadeira, mas apenas uma série de mitos sem nenhuma sustentação empírica que são defendidos por diferentes facções de vampiros. Não existe uma versão correta, até porque a memória dos vampiros se perdeu com o tempo: quando um ancião se entrega ao torpor, o sono secular profundo dos vampiros, suas memórias começam a se confundir e enevoar, impedindo que eventos do passado remoto sejam relembrados com clareza, um efeito conhecido como Brumas da Eternidade.
Contudo, a sensação de liberdade ocasionada por essa abordagem pode também ser desorientadora: privados de uma moldura geral para seus cenários, muitos narradores e jogadores poderiam se sentir desamparados, incapazes de dar seus próprios passos e criar suas tramas e seus cenários. Na minha opinião, as maiores limitações do jogo vêm justamente da ingrata tentativa de conjugar as premissas de um cenário radicalmente flexível a uma moldura ordenadora geral, o que muitas vezes leva a ambientação a um meio termo um tanto incômodo. Para entender como o jogo tenta conjugar essas tendências, é preciso primeiro compreender os pilares que organizam o cenário e a sociedade vampírica.
Os eixos X, Y e Z (ou “posso jogar de Tzimisce antitribu com Rapidez?”)
Vampiro: o Réquiem segue o padrão geral de organização dos títulos “sobrenaturais” do atual Mundo das Trevas. Na verdade, como foi o primeiro desses títulos, seria mais justo dizer que ele inaugurou esse padrão, que seria a solução adotada pela White Wolf para um modelo de cenários estruturado, mas mais flexível que a do antigo Mundo das Trevas. De forma geral, pode-se dividir as facções da sociedade vampírica em três eixos, chamados às vezes de “X, Y e Z” pelos fãs.
O “eixo X” representa qualidades inatas de cada personagem, ou seja, as características mais gerais que o definem de forma involuntária. No caso dos vampiros, o “eixo X” corresponde aos clãs. Deveria haver uma alerta, em letras garrafais e emolduradas por neon, para o jogador habitado com a Máscara: os clãs não funcionam como na edição antiga! Em vez de serem famílias com organizações e hierarquias internas, códigos de conduta e formas de ver o mundo, os clãs do Réquiem representam apenas arquétipos muito gerais normalmente associados aos vampiros na ficção. Ou seja, em vez de serem instituições ou organizações que implicam alguma espécie de lealdade ou compromisso de seus membros, os clãs são apenas tendências muito gerais e abstratas herdadas pelo sangue. Há apenas 5, cada qual representando uma associação comum com a figura do vampiro: Daeva (paixão), Gangrel (selvageria), Mekhet (mistério), Nosferatu (horror) e Ventrue (autoridade). Os clãs determinam apenas as disciplinas favorecidas, ou seja, os poderes sobrenaturais aos quais os vampiros têm acesso, e suas desvantagens de sangue.
Já o “eixo Y” representa as filiações voluntárias de cada vampiro, ou seja, os grupos, associações formais e instituições aos quais ele se filia. Para os vampiros, trata-se das coalizões, grupos de vampiros unidos em torno de ideais, interesses, objetivos e pontos de vista comuns. Se os clãs não têm uma estrutura interna, as coalizões são fortemente institucionalizadas, contando com hierarquias, ritos, títulos próprios e às vezes até sistemas de crenças uniformizados, e requerem a lealdade de seus membros. O livro básico retrata as 5 mais importantes coalizões do mundo ocidental, mas deixa claro que elas variam enormemente de cidade para cidade. Além dessas 5 coalizões “globais”, haveria ainda uma série de coalizões menores, de escala nacional ou mesmo regional, unidas em torno de interesses mais específicos. Das 5 coalizões retratadas, 2 têm viés político, 2 têm viés religioso e 1 tem um viés mais filosófico. No primeiro grupo estão o Invictus (um grupo de vampiros aristocráticos que acreditam no governo dos mais aptos) e o Movimento Cartiano (uma coleção de movimentos políticos inspirados nos Estados Modernos). As coalizões de vertente mais religiosa são a Lancea Sanctum (que se nutrem da tradição bíblica e acreditam representar a virtude) e o Círculo da Anciã (que se dedica a práticas mais naturalistas de vertente pagã e ao culto a figuras femininas). Por fim, na vertente mais filosófica, podemos localizar a Ordo Dracul (unida em torno do objetivo de transcender as limitações da condição vampírica através do estudo e da prática de exercícios esotéricos). Subentende-se que a distribuição dos temas entre as coalizões (2 políticas, 2 religiosas e 1 filosófica) reflete mais ou menos a frequência e a importância que os criadores do jogo imaginam que cada um desses aspectos possa vir a ter nas campanhas de Réquiem.
Ao contrário do que ocorre com os eixos X e Y, que se limitam a 5 categorias cada um, o “eixo Z” tem um número potencialmente infinito de variações. Trata-se das linhagens, ou pequenos ramos dos 5 grandes clãs que acabaram se diferenciando de suas famílias fundadoras. As linhagens exibem características particulares, como novas disciplinas e novos defeitos, associadas sempre a um tema dominante, como as belas artes (caso dos Toreadores), a doença (os Morbus), a loucura (os Malkovianos) ou simplesmente uma história de lealdade compartilhada (como ocorre com os Brujas). Os membros de uma linhagem podem ter apenas uma herança de sangue em comum (funcionando como um clã mais especializado), ou podem também ter laços unindo seus membros em histórias e lealdades compartilhadas (ou seja, assumindo algumas características de uma coalizão). Os fãs da Máscara vão perceber nas linhagens o retorno dos conceitos de alguns dos antigos clãs, mas com algumas alterações importantes que não se limitam aos nomes levemente diferentes. Para facilitar a customização dos clãs através das linhagens, o livro apresenta um guia geral com indicações para criar novas linhagens e novas disciplinas sem desbalancear as regras.
Os eixos X, Y e Z foram pensados para serem plenamente compatíveis, transformando a criação de personagens numa espécie de “análise combinatória” em que qualquer combinação de clã e coalizão irá gerar um conceito consistente de personagem. O eixo Z é uma derivação opcional, de modo que a maioria dos personagens não fará parte de nenhuma linhagem (embora possa tornar-se um membro de alguma ao longo do jogo). Uma vez que essas facções obedecem a uma lógica própria, é bastante enganoso pensar que existem paralelos entre certos clãs da Máscara e os clãs e coalizões do Réquiem. O uso do nome Gangrel poderia sugerir que se trata de uma “reciclagem” do antigo clã Gangrel da Máscara; contudo, a diferenças entre os conceitos de clã nos dois jogos são tão decisivas que essa comparação perde força: os clãs do Réquiem refletem apenas tendências gerais, e não interesses ou visões de mundo específicos. Um Gangrel membro do Invictus (pense, por exemplo, num general autoritário e brutal, ou então num traficante de drogas que lança mão de todos os meios para fazer valer sua autoridade) pode estar tão longe dos estereótipos do antigo clã Gangrel que quase não existe mais nenhuma semelhança. Portanto, todas as comparações dos clãs da Máscara com quaisquer das facções do Réquiem devem ser encaradas com bastante reserva e ceticismo.
O livro tem o cuidado de descrever os clãs e as coalizões da forma mais genérica possível, como conceitos amplos dentro dos quais cabem inúmeras variações. Alguns leitores, habituados com a minúcia da descrição das organizações existentes na Máscara, provavelmente irão estranhar essa abordagem mais “genérica”. Contudo, ela deve ser entendida no enfoque mais amplo do cenário: a ideia é que as facções sirvam como molduras flexíveis que possam ser adaptadas a uma ampla variedade de situações e contextos particulares. Subentende-se que, em cada cidade, os ideais e títulos do Movimento Cartiano possam mudar significativamente: não é difícil imaginar, por exemplo, as diferenças entre uma facção da coalizão que defende o modelo político republicano e uma outra facção que defende uma ditadura revolucionária. Quase todas as coalizões admitem variações deste tipo. Assim sendo, o que pareceria uma fraqueza da descrição do livro deve ser entendido como uma de suas virtudes, no sentido de fornecer estruturas gerais a partir das quais os narradores devem preencher as lacunas para criar configurações específicas, adaptadas a suas cidades, permitindo um grau de customização maior do que o que existia nos antigos clãs e seitas da Máscara. O objetivo é evitar algumas adaptações forçadas que ocorriam no antigo cenário: como inserir um clã de adoradores egípcios de serpentes na capital da Islândia? O Réquiem tenta resolver esse problema extraindo as particularidades étnicas e culturais de suas facções, tornando-as não muito mais que um quadro geral a ser necessariamente preenchido em cada contexto.
Ao reduzir o enfoque ao nível mais regional e deixar as facções o mais abstratas possível, passíveis de ajustes em cada situação, O Réquiem consegue atingir um grau de universalidade maior do que A Máscara. Uma vez que o narrador não se vê na necessidade de estender conceitos etnicamente restritos e culturalmente específicos para a sociedade vampírica como um todo, pode criar instituições muito mais verossímeis e adaptadas para cada contexto. Com isso, ironicamente, ao abdicar da escala global das instituições, o jogo consegue propor um viés globalizado muito mais realista, em que as situações não parecem forçadas. É como se O Réquiem tentasse criar, desde o começo, uma moldura que realmente pudesse funcionar bem em todos os contextos: é possível selecionar qualquer aspecto da ambientação e explorar toda uma crônica ao redor dele, deixando de lado os elementos que não se ajustam sem perdas significativas, pois tudo é encarado como mais ou menor modular, adaptável, e mesmo dispensável. Com isso, O Réquiem tentou fundar todo o cenário em uma estrutura que realmente funcionasse em escala global, fornecendo o alicerce para desenvolvimentos futuros e mais específicos. Em vez do metaplot, sua aposta para obter isso é a adaptabilidade.
As regras (ou “posso ser de 7ª Geração?”)
Uma vez que as regras básicas do sistema Storytelling são apresentadas no módulo básico do Mundo das Trevas, Vampiro: o Réquiem conta apenas com as regras específicas para os vampiros, deixando mais páginas para a descrição do cenário. Há regras para lidar com o fogo, com ferimentos e recuperação, com os poderes sobrenaturais do Sangue e com suas características inatas, como a Mácula do Predador ou as limitações e características das quais derivam as tradições vampíricas.
Duas das regras mais importantes dizem respeito ao padrão de comportamento dos vampiros (o que advém do enfoque sobre a moralidade e os conflitos com a Fera) e à escala de seu poder sobrenatural. Todas as criaturas sobrenaturais do Mundo das Trevas possuem duas características que refletem esses dois aspectos. No caso dos vampiros, trata-se da Humanidade e da Potência do Sangue. A Humanidade reflete o quanto os padrões humanos de moral do vampiro ainda são capazes de resistir aos impulsos desumanizantes da Fera. Em termos de regras, não há nenhuma inovação fundamental aqui: a Humanidade funciona de forma quase idêntica à Moralidade descrita no módulo básico, com algumas adaptações menores que decorrem da existência da Fera.
Já a Potência do Sangue define o quão poderoso e concentrado é o sangue do vampiro. Na Máscara, o sangue de um vampiro era tão mais concentrado e potente quanto mais baixa fosse sua geração, ou seja, quanto mais próximo ele estivesse, do ponto de vista da descendência, do primeiro vampiro, Caim. Contudo, a inexistência de um “primeiro vampiro” no Réquiem invalida completamente essa abordagem. Por isso, a Potência do Sangue aumenta espontaneamente com o tempo, e pode ainda ser aumentada também através do Amaranto. Todos os vampiros jovens começam com seu sangue ralo e diluído, e ele vai se concentrando mais e mais à medida que passa o tempo, permitindo realizar feitos cada vez mais espetaculares de poder sobrenatural. Contudo, a escalada não é infinita: há um ponto em que o sangue do vampiro é tão concentrado e potente que ele não pode mais obter sustento alimentando-se de meros mortais. A partir daí, apenas o próprio sangue vampírico o sustenta, e ele precisa começar a consumir o sangue de outros dos seus. Contudo, ao consumir três vezes o sangue do mesmo vampiro, ele estabelece um vinculum, tornando-se afetivamente dependente daquele do qual se alimentou. Com isso, restam ao vampiro que chegou a este ponto poucas opções a não ser começar a matar seus semelhantes para conseguir se sustentar.
O vampiro tem a opção de não se deixar chegar a este ponto, permitindo-se cair em um sono profundo e secular conhecido como torpor, durante o qual seu sangue irá se afinando até retornar à concentração inicial, quando o vampiro acorda e o ciclo todo recomeça. Durante o torpor, o vampiro não apenas perde poder como também está sujeito às Brumas da Eternidade, perdendo e confundindo suas memórias, misturando-as entre si e com suas fantasias e fantasmas. Por isso, quando desperta de um longo torpor, o vampiro pouco se lembra dos detalhes de sua existência pregressa. Com a substituição da Geração pela Potência do Sangue e pelas Brumas da Eternidade, O Réquiem consolida em termos de regras as mudanças de enfoque da ambientação, dando origem a um cenário mais pulverizado e mais dominado pelas incertezas, pelas fantasias de vampiros secularmente enlouquecidos e pela paranoia.
A parte mais substantiva do capítulo de regras é provavelmente aquela dedicada às disciplinas, ou seja, às diversas manifestações sobrenaturais do poder vampírico, que incluem desde uma rapidez sobre-humana até a capacidade de ler pensamentos ou se metamorfosear em morcego. Cada uma das 10 disciplinas é um conjunto de poderes agrupados em torno de um conceito comum, e cada clã fornece aos seus membros a familiaridade com três disciplinas. Além disso, existem mais 3 disciplinas que se comportam de maneiras diferentes, constituindo capacidades adquiridas pelo aprendizado, limitadas a algumas coalizões específicas. Retorna aqui a maior parte dos poderes já existentes na Máscara, alguns praticamente idênticos, e outros com alterações significativas que tendem a diminuir o nível de poder – sobretudo nas disciplinas físicas.
O conteúdo do livro (ou “onde ficam as disciplinas, mestre?”)
Para dar uma ideia mais concreta do conteúdo do livro, vejamos brevemente como ele se distribui em capítulos.
O primeiro capítulo (A sociedades dos Amaldiçoados) descreve as linhas gerais do cenário e da sociedade vampírica, apresentando os principais conceitos do jogo, descrevendo a organização das cidades, as tradições vampíricas e as coalizões. O segundo capítulo (Personagem) apresenta as características peculiares aos vampiros, explicando o processo de criação dos personagens e mostrando como o vampirismo é um modelo, um conjunto de regras que podem ser aplicadas a personagens mortais. O capítulo ainda descreve os clãs e as disciplinas. O terceiro capítulo (Regras e sistemas especiais) apresenta as regras especiais que se aplicam exclusivamente aos vampiros, tais como a Humanidade e a Potência do Sangue, entre outras. Uma das partes mais interessantes do capítulo é mostrar como as perturbações psicológicas (uma parte importante do sistema de Humanidade) podem se aplicar aos vampiros. O capítulo 4 (Narrativa e antagonistas) mostra dicas de como criar ambientações e histórias articulando temas, enredos e conflitos específicos numa estrutura narrativa coerente, e como narrá-los de formas dramáticas e funcionais. O capítulo mantém a tradicional qualidade típica dos livros da White Wolf no tocante a esses temas, fornecendo dicas interessantes e inspiradoras inclusive para os narradores já experientes. Por fim, o capítulo ainda apresenta estatísticas e breves descrições de alguns antagonistas, empregando o modelo de descrições curtas e objetivas do Mundo das Trevas para alguns antagonistas coadjuvantes. O apêndice 1 explora as linhagens, enquanto o apêndice 2 é totalmente dedicado ao cenário pronto, a cidade de Nova Orleans.
Opinião geral: as tensões entre o local e o global

Pode-se dizer que o maior calcanhar-de-Aquiles de Vampiro: o Réquiem decorre da sua tentativa de conjugar um modelo radicalmente flexível e adaptável com a necessidade de fornecer parâmetros de descrição que não deixassem os jogadores e narradores carentes de suporte para suas crônicas. Em outras palavras: a necessidade de fornecer material prontamente utilizável em jogo tende a se opor à necessidade de adaptar os materiais a cada contexto, cada cidade, cada bairro.
No nível das estruturas políticas, por exemplo, O Réquiem tenta implodir a rigidez existente na Máscara fornecendo uma série de modelos políticos alternativos; contudo, presume tacitamente que todos eles acabam, no limite, funcionando do mesmo jeito mas com outras roupagens e títulos. Na hora de descrever os títulos e formas de organização dos vampiros de uma cidade, o livro passa a impressão de que todas as formas alternativas não passam de “monarquias feudais” disfarçadas e hipócritas. A proposta de flexibilização é mais radical do que sua implementação efetiva no livro, em parte por conta das dificuldades práticas que adviriam de tentar descrever três ou quatro modelos de organização política completamente diferentes. No fim das contas, o narrador tem sempre a opção de criar tudo do zero, mas se partir das indicações fornecidas pelo livro, todas as suas cidades funcionarão mais ou menos de acordo com um modelo padronizado.
No âmbito das coalizões existe um incômodo até mais intenso. Em teoria, as 5 coalizões apresentadas são apenas as maiores e mais disseminadas, e mesmo assim admitem inúmeras variações internas. Ao lado delas, em cada região, supõe-se que existam várias outras coalizões menores, dedicadas a fins mais específicos e particulares. Contudo, o livro jamais menciona essas coalizões menores (exceto ao descrever duas coalizões de antagonistas), resumindo tudo, na prática, às 5 coalizões genéricas. No limite, isso acaba por fortalecer a identidade do cenário à mesma medida que enfraquece sua flexibilidade radical. O problema se agrava com o fato de que as coalizões exigem lealdade unilateral de seus membros: contrariando o senso comum, não é possível que um vampiro participe dos ritos religiosos da Lancea Sanctum aos domingos, das assembleias republicanas do Movimento Cartiano às terças e dos experimentos de aprimoramento pessoal da Ordo Dracul às quintas, o que daria muito mais circularidade e verossimilhança aos conceitos do cenário. Em vez disso, as coalizões aparecem como panelinhas fechadas e rivalizando-se mutuamente, ainda que nem sempre fique claro porque uma seita de adoradores da Deusa-Mãe precise necessariamente rivalizar com a República local.
A mesma tensão entre conceitos gerais e adaptações locais pode ser observada na relação entre clãs e linhagens. As linhagens fornecem excelentes ferramentas de customização para os cenários, permitindo descrever em termos muito mais específicos as famílias vampíricas que habitam tradicionalmente uma região específica. Afunilando os conceitos dos clãs, elas permitem criar um senso real de pertença e descendência; contudo, o livro pouco explora esse aspecto quando descreve as cenas locais, preferindo deixar as linhagens vinculadas a conceitos especializados e não a descendências com fortes associações territoriais.
A decepção se confirma ao final do livro, no apêndice 2, em que se descreve um cenário pronto para jogar: a cidade de Nova Orleans. A cidade é uma escolha bastante feliz dos criadores do jogo, pois não só é o cenário do romance Entrevista com o Vampiro (Anne Rice), a maior inspiração literária para o jogo, como também é uma cidade com uma enorme diversidade e miscigenação cultural e racial, fornecendo um “tempero americano” que enfatiza a vocação global e multicultural do cenário. Apesar disso, contudo, Nova Orleans é apresentada de uma forma decepcionantemente convencional, seguindo os modelos “genéricos” apresentados no livro sem aprofundá-los nem lhes dar cor local. Não existem coalizões além das 5 principais (que nem chegam a ser especialmente customizadas para a realidade cultural de Nova Orleans), e tampouco são descritas as eventuais linhagens locais dos clãs. No encerramento do livro, portanto, Vampiro: o Réquiem não explora inteiramente o seu próprio potencial de customização e verossimilhança.
De uma maneira geral, é possível dizer que o livro tem o mérito de fornecer novas bases para uma ambientação vampírica muito mais consistente e verossímil, que realmente permite adensar todas as possibilidades oferecidas pelo cenário. Contudo, por não levar até os limites mais interessantes seu foco local e sua flexibilidade, acaba passando a incômoda sensação de que poderia ter sido um cenário muito mais revolucionário e inovador do que de fato acaba sendo.








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