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“A Frente Fria Que a Chuva Traz” reflete sobre o vazio da burguesia

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Neville D’Almeida sempre buscou no naturalismo força motriz retórica para compor seus contundentes mosaicos que expõem as chagas da sociedade, seja de qual camada for. Não por acaso são de sua autoria duas das mais marcantes adaptações de Nelson Rodrigues (outro cronista niilista) para o cinema: “A Dama do Lotação” e “Os Sete Gatinhos”.

Durante a fase da pornochanchada, período em que o cinema brasileiro era visto como sinônimo de sacanagem, o cineasta se aproveitava da avidez do público por conteúdo sexual e explorava uma potência erótica para alinhavar sua argumentação crítica, embora acabasse desviando as atenções da maioria do real cerne da questão exposta.

Sete anos após anunciar que iniciaria uma nova produção, e quinze desde seu último longa, chega às telas “A Frente Fria Que A Chuva Traz” (Brasil/2016). Na trama acompanhamos um dia no cotidiano de cinco jovens de classe média carioca: Alisson (Johnny Massaro) e Espeto (Chay Suede), que comandam festas na laje alugada de Gru (Flávio Bauraqui), um morador da favela do Vidigal, já sem paciência para o abuso de seus clientes.

As festas são regadas a drogas, álcool e sexo, e emolduradas pela bela paisagem que se tem do alto do “morro chique”. Em meio à festa que nunca termina de Alisson, Espeto e suas amigas, está Amsterdam (Bruna Linzmeyer), jovem disfuncional que atua na trama como porta voz do diretor, ao denunciar, sem papas na língua, a decadência do contexto.

O longa é livremente inspirado na peça homônima de Mário Bortolotto, que no filme interpreta o segurança da festa contratado por Alisson. Neville, desta vez, vocifera contra a classe média a partir do universo dos jovens bem nascidos do Rio de Janeiro, alienados e frívolos, que vivem sob a proteção de um mundo irreal, onde seus atos não geram conseqüências, e a única preocupação é como organizar a próxima festa ou descolar a droga mais entorpecente.

A escolha da favela por eles, para seus eventos dionisíacos, passa longe da conscientização ou integração social. É apenas a vista mais bonita da cidade. Tanto que o segurança da festa, chamado pela alcunha de Ninguém, está ali para impedir que moradores ousem adentrar no cercado.

O próprio dono da laje é tratado com desprezo pelos rapazes e pelas meninas, um direito que, do ponto de vista desses jovens, lhes confere, uma vez que o remuneram. A eterna lógica burguesa brasileira que justifica tudo com o fato de estar pagando, ou por estar no estrato social mais alto. O valor desembolsado dá também o direito de pisar em quem se encontra abaixo.

Com o advento da pacificação, as favelas cariocas da zona sul foram se tornando playgrounds para as classes mais abastadas e para estrangeiros, mas o programa tinha o desiderato apenas de tornar as favelas mais seguras para esse público, enquanto o desenvolvimento e a inclusão da população carente que lá reside foi esquecido.

Talvez por ter passado tanto tempo sem filmar, prejudicado pelas mudanças das leis de incentivo e de distribuição, Neville conduz sua crítica contumaz em tom de desabafo, sem filtros, sem se valer de alegorias como em “Rio Babilônia”. Daí, a personagem Amsterdam (ótima atuação de Bruna Linzmeyer), que se insere como elemento catalisador, em alguns momentos o faz com um didatismo desnecessário, pois o ponto de vista do diretor fica evidente logo nas primeiras tomadas, mostrando os carrões subindo a favela.

Por outro lado, a produção, que seria relevante em qualquer momento, torna-se ainda mais agora, quando vemos essa classe média, ali retratada, endossando uma conspiração política que visa muito mais atender aos interesses de um grupo oligárquico, querendo manter as rédeas de um sistema que o favorece, do que em combater a corrupção.

“A Frente Fria Que A Chuva Traz” nos dá este alento, de pensar a constituição social brasileira neste momento decisivo. Independente de posicionamento político, é um convite à reflexão, o que torna o filme obrigatório.

Filme: A Frente Fria Que A Chuva Traz
Direção: Neville D’Almeida
Elenco: Bruna Linzmeyer, Chay Suede, Johnny Massaro
Gênero: Drama
País: Brasil
Ano de produção: 2016
Distribuidora: Downtown Filmes

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