Nos anos 2010, espalhou-se uma tendência que pode ser vista até hoje nos cinemas: o remake em live-action de histórias antiquíssimas, em geral contadas pela primeira vez na tela grande através de animações. Na nova década, de 2020, surge outra tendência: a adaptação de contos de fadas e histórias infantis dentro do gênero do terror. Esta nova tendência vem enchendo salas de cinema, apesar da qualidade questionável destes filmes. “A Vingança de Cinderela” é mais um filme deste filão e nada o coloca acima dos demais horrores horríveis.
O filme começa com Katherine (Stephanie Lodge), a madrasta de Cinderela, tomando parte na decapitação do marido. Ela conta sobre a morte dele para Cinderela (Lauren Staerck), que a partir de então terá de servir a Katherine e suas duas filhas, Josephine (Beatrice Fletcher) e Rachel (Megan Purvis). Três anos de trabalho duro e castigos físicos se passam, até que a família é convidada para o baile real do príncipe James (Darrell Griggs), que está à procura de uma esposa.
Quando Katherine, Josephine e Rachel vão ao baile e a deixam em casa, Cinderela suplica para ir também. Suas preces são atendidas por uma Fada Madrinha (Natasha Henstridge), que convoca Tom Ford, Vidal Sassoon e Christian Louboutin para ajudar na transformação da jovem camponesa. E lá vai ela para o baile em um carro elétrico cor de laranja dirigido por Elon Musk! Ela vai ao baile, conhece o príncipe, mas à meia-noite tudo volta ao normal e ela só deixa para trás um sapatinho de cristal, única pista que tem o príncipe apaixonado para encontrá-la.
No dia em que o criado do príncipe vai experimentar o sapatinho nas irmãs de Cinderela, ela é trancada num cômodo, amordaçada. A Fada Madrinha então sugere um prato que se come frio: vingança. A partir daí, você pode esperar fraturas expostas, tripas saindo por um corte, olhos retirados das órbitas, jump scares e muitos, muitos gritos.
O que se anunciava ao começo do filme não se realizou. A projeção se inicia com uma música sobre a Cinderela encontrando o príncipe na cama com sua irmã e buscando vingança de Vossa Alteza machista. O que se desenrola na trama é uma vingança contra as irmãs e a mãe, e o príncipe feioso mal aparece. A narrativa anunciada pela canção valeria mais a pena de ser vista, e ainda seria possível tecer um comentário feminista sobre os contos de fada.
Cinderela bate, mas também apanha para efeito de realismo. É ainda pelo realismo que muito sangue jorra o tempo todo, e aí jaz o defeito primordial do filme: optar pelo realismo e não abraçar o kitsch. Cinderela buscar vingança da madrasta e das irmãs era a trama mais óbvia e mais segura, e infelizmente foi a escolhida pelo roteirista Tom Jolliffe e o diretor Andy Edwards. Se fosse escrito ou dirigido por ao menos uma mulher talentosa, “A Vingança de Cinderela” poderia ser bem melhor.
O elenco não se destaca com grandes atuações. Natasha Henstridge, ex-modelo que virou atriz, tem carisma mediano como a Fada Madrinha. Stephanie Lodge, a Madrasta, estudou no Stella Adler Studio of Acting, mas isso não é perceptível. Lauren Staerck, nossa princesa em busca de vingança, tem experiência com kickboxing e costuma dispensar dublês em cenas de ação, e tem algumas delas para fazer em “A Vingança de Cinderela”.
Um ponto interessante a ressaltar é que as versões originais – ou as mais originais possíveis, as primeiras eternizadas em coletâneas, já que se trata de histórias transmitidas oralmente através dos séculos – dos contos de fada em muito se assemelham ao que hoje consideramos como terror. No “original” de Cinderela, por exemplo, uma irmã corta seus dedos para o pé caber no sapatinho de cristal, como mostrado no filme. Aqui foram os “autores” do conto de fadas, não os cérebros responsáveis pelo filme, que injetaram o horror.
“A Vingança de Cinderela” prova que tem muita gente disposta a fazer cinema, mas só disposição não garante um bom resultado – nem significa que quem está disposto necessariamente deve fazer cinema. Sem qualidades redentoras, é um filme que desperdiçará 85 minutos da sua vida, mas que poderá garantir algumas risadas – mesmo que for de vergonha alheia.
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