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Cangaço Overdrive, um olhar distópico e realista do Ceará

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Berra o sertão impaciente
reclamando da chuva
o verde do pasto.
Numa manhã de abril arrasto
por Sobral em busca,
de um amigo, cedente e ciente.
E o Zé e o Chico naquele lugar
Ardente cangaço soprando
Da história o passado achar
Para o futuro ficar pensando,
No mundo novo encontrar.


Os livres versos que apresento narra meu encontro com o Zé Wellington em Sobral, para pegar de suas mãos, seu último lançamento, o Cangaço Overdrive, mais uma visita do autor, jornando no sci-fi na vereda do cyberpunk, contando uma história pós apocalipse, bem distópica, nos sertões do nosso Ceará.
Publicada pela editora Draco, a obra conta com o Wellington escrevendo o roteiro, com desenhos de Walter Geovani (Red Sonja, Vampirella) e Luiz Carlos B. Freitas e cores de Dika Araújo (Quimera, Amor em quadrinhos) e Tiago Barsa (The few and the cursed).
Vencedor do prêmio HQ Mix 2016 como Novo Talento Roteirista com Steampunk Ladies: Vingança a Vapor, o sobralense abre mais um trabalho importante para dimensionar a questão cultural do país, que com certeza está cada vez mais se afirmando aqui no Brasil, de sair do mainstream das comics e apresentar obras originais do gênero.
Amalgamando História e Cultura, Wellington explora com sua veia nerd, no ponto de vista futurista distópico, o passado do movimento do Cangaço, as possíveis consequências do presente e um futuro possível, onde temos o cálido Ceará enfrenta uma vez mais uma estiagem. E abufele violência e resistência no nosso Ceará. A sinopse nos insere na narrativa: O Ceará passa por sua maior seca em séculos. Uma terra esquecida pelo governo e dominada pelos interesses dos conglomerados empresariais, este é o cenário árido onde um lendário cangaceiro e um impiedoso coronel são reanimados para continuar a peleja que deixaram no passado“.
Uma história de sobrevivência em um futuro próximo numa terra já castigada pela natureza e pelo poder público. Pegando de William Gibson o subgênero cyberpunk, visto em uma infinidade de ocasiões, no caso a viagem no tempo, as próteses cibernéticas, a marginalização, temas que Zé Wellington consegue seguir além das típicas histórias, sobretudo na introdução da narrativa gráfica.

Influenciado pela História do “movimento de banditismo” nordestino, que abre a Hq e que está no título, o Cangaço se compactua contra o opressor, atemporalmente,  a base histórica que o autor usa para compor o argumento para Cangaço Overdrive. E para quem não conhece o Cangaço, segundo o historiador Eric Hobsbawn, foi um fenômeno ocorrido no Nordeste do Brasil por volta do século XIX e perdurou até inicio do século XX e, que teve sua gênese em questões sociais e também fundiárias do nordeste brasileiro, caracterizando-se por atitudes e acontecimentos violentos de grupos e até de indivíduos isolados.
Numa linguagem ágil, aperreado mesmo, mas sem ser avexado, o texto se encarrega de trazer o Ceará para todo o país, a pobreza, o humor conhecido cearense e a veia poética de nossos cordelistas, cantadores e repentistas. A narrativa segue um cordel ao melhor estilo de Patativa de Assaré, com sotaque e tudo. Para quem não conhece o Patativa, o sr Antônio Gonçalves da Silva, foi uma das principais figuras da música nordestina do século XX, um poeta popular que se distinguiu pela marcante característica da oralidade. Seus poemas eram feitos e guardados na memória, para depois serem recitados. E o autor homenageia a métrica do cordel por toda a HQ, numa narração secundárioa, além dos vocábulos reais do cotidiano nordestin, bem utilizadas por sinal..
Não irei tratar muito da história em si, sem spoilers mesmo, masressalto  o uso de personagens de outro tempo histórico sem desbancar para o clichê do gênero, o roteiro mostra a maestria do autor, ainda mais inserindo-o para um contexto mais social, com os personagens do Cangaço original em um cenário futurístico, numa critica social dos dias atuais.

Na arte, Walter Geovani traz a cor de outras obras, como fez em Red Sonja pela Dynamite. Um traço estilizado, mas detalhista, onde representa um sertão sofrido com a mesma habilidade ao desenhar uma cidade futurística. A narrativa pede cores e a parceria que Geovani faz com Luiz Carlos B. Freitas, desenhista estreante de Quixeré – CE, emparelhados com as cores marcantes da maranhense Dika Araújo e do goiano Tiago Barsa.
Narrativamente, a arte está bem controlada, mostrando o ritmo da história de acordo quando é para acelerar e quando é para desacelerar. A composição da página é bem ampla, com variações de um quadro só, a seis quadros em uma página. A caracterização dos personagens está muito expressiva e os desenhos foram desenvolvidos para se alinhar com as luzes e as sombras e destacando as cenas em flashbacks. Graficamente, lembra muito os renomados autores do fumetto, mas com o toque regional brasileiro.
Encontro com o autor (à esquerda) em Sobral.
Brasiliedade, capitalismo selvagem, corporações e cyberpunk, Cangaço Overdrive é um retrato da luta atual, antagônica que se espalhou pelo país, tanto na política quanto na economia, enquanto parte da população escolhe os tais salvadores da pátria, Zé Welllington faz o leitor pensar, além de entreter muito bem. E como minha vó diz: “baú de pobre é cumbuca”. Grato, meu amigo, pela edição autografada e leitores se querem um material arretado, acunhe a pegar essa HQ.

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Cadorno Teles -

Cearense de Amontada, um apaixonado pelo conhecimento, licenciado em Ciências Biológicas e em Física, Historiador de formação, idealizador da Biblioteca Canto do Piririguá. Membro do NALAP e do Conselho Editorial da Kawo Kabiyesile, mestre de RPG em vários sistemas, ler e assiste de tudo.

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