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A Aforista: peça de Marcos Damaceno, com influência de Thomas Bernhard

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Achei curiosa a coincidência ao ler, no texto de Marcos Damaceno, no programa da peça, que A Aforista é a segunda de uma trilogia escrita sob a influência do escritor Thomas Bernhard: afinal, nesse momento estou lendo o romance Derrubar árvores – uma irritação, do mesmo autor, publicado pela Todavia. Marcos Damaceno assina direção e texto de A Aforista, que é interpretado por Rosana Stavis, acompanhada por dois pianistas, Sergio Justen e Rodrigo Henrique. A composição e a direção musical, de Gilson Fukushima, têm papel relevante na montagem, por duas razões: eles aludem a dois outros personagens, que são o centro das elucubrações aflitas da aforista, por um lado, e, por outro, a música que Sergio e Rodrigo tocam, em seus respectivos pianos de cauda, dialoga com e talvez possa representar o movimento do pensamento aparentemente descarrilado da personagem: à medida que a melodia, tão aflitiva quanto suas elucubrações, se desenrola, para, acelera, aguarda, repete-se, a personagem faz trejeitos e gestos com braços, às vezes como se estivesse escrevendo no ar, além de promover balanços bruscos de cabeça, francamente tomada pelo ato de pensar.

A Aforista

Trata-se da personagem que dá nome à peça, também pianista, segundo nos conta no decorrer de seu monólogo, mas que se considera uma escritora, ainda que de aforismos, pequenas anotações, uma infinidade de cadernos que ela precisaria juntar e concatenar para transformar em obra, segundo também nos relata. A aforista, portanto, abre seu texto falando exatamente da relação entre o pensamento, o tempo e a escrita. Acrescentando-se a esses elementos, sublinha o da caminhada, que organizaria o pensamento. O texto que narra nessa caminhada – representada, presumo, por uma trilha feita com o tecido preto que se une ao vestido enlutado que traja – vai remontando toda a história, ou possíveis perspectivas da história e de seus personagens, além dos desfechos e das hipóteses relacionadas. Ao fazê-lo, questionamentos sobre a vida, a arte, os artistas, a escrita se imbricam no desenrolar das memórias que traz desde o tempo em que eram alunos e os personagens mencionados ainda não haviam ganhado projeção.

De fato, se falarmos da influência literária de Thomas Bernhard sobre a peça, é preciso mesmo sublinhar que ler o autor é dedicar-se a uma dessas leituras em que é difícil interromper. O romance Derrubar árvores, por exemplo, é um texto que não tem divisões nem em capítulos, nem em parágrafos, e, se deixar, vamos virando aquelas páginas sem parar, o que é facilitado por uma escrita bastante fluida também. A narrativa em primeira pessoa, no caso do romance citado, é um constante observar de um mundo ao redor que causa irritação, algum cansaço, muito asco e reprovações sucessivas, de si e do outro, em que tudo é movido por lembranças e contextualizações que vêm e vão no texto, e eu diria que é possível realmente reconhecer a influência de Bernhard no texto que Rosana Stavis nos traz com fôlego, tanto em seu formato, caracterizado pela  circularidade, pelas repetições, quanto no que se refere ao conteúdo, que diz respeito a uma certa crítica aos artistas e à sua vaidade, uma perspicaz percepção do que há de humano demasiado humano nas relações entre as pessoas – no caso do espetáculo, os dois amigos pianistas aludidos e como evolui uma possível dinâmica de competição entre eles –  e as pontuações sobre a escrita. A aforista está absorta em uma história trágica, está mobilizada pela dúvida face à sua implicação na história, está perturbada por uma morte. Ela não para de pensar e escrever no ar, agitadamente, enquanto caminha.

A Aforista

Não se trata de um espetáculo fácil, porque as questões e os conflitos trazidos no texto tampouco o são. Mas, ainda assim, com momentos preciosos de alívio cômico, em que a ironia que permeia o texto de Damaceno, as sutis expressões corporais dos pianistas em cena e a representação de Stavis, principalmente quando a aforista escreve seus aforismos reconhecendo seus inerentes clichês sem se desfazer deles, ou quando tem certeza de que sua cabeça está ótima (ainda que descabelada devido a tantas ruminações) e que não se afeta por aquilo que afeta os demais personagens são, enfim, momentos que nos levam a risadas por nos reconhecermos nessa constante oscilação em torno da incerteza quanto a nós mesmos e pelas dúvidas que nos convocam incessantemente sobre as hipóteses que forjamos sobre o que nos sucede ao redor. Assim, o espetáculo nos permite esse momento de retirada dos hábitos automática da vida, com reflexões e ironias que nos dão a chance de nos reconhecermos e, com isso, pensarmos sobre nós mesmos.

Ficha técnica

A AFORISTA

Texto e Direção: Marcos Damaceno

Elenco: Rosana Stavis

Pianistas: Sergio Justen e Rodrigo Henrique

Composição e Direção Musical: Gilson Fukushima

Iluminação: Beto Bruel

Figurinos: Karen Brustollin

Assessoria de Imprensa: Ney Motta

Produção Executiva: Bia Reiner

Assistente de Produção: Marianna Holtz

Produção: Cia.Stavis-Damaceno

Serviço

A AFORISTA

Temporada: 25 de janeiro até 05 de março de 2023

Dias e horários: Quarta à sábado, às 19h30, e domingo, às 18h

Classificação: Indicado para maiores de 16 anos

Duração: Aproximadamente 70 minutos

Local: Centro Cultural Banco do Brasil – Teatro I

Rua Primeiro de Março, 66, Centro, Rio de Janeiro

Informações: 21 3808-2020 | ccbbrio@bb.com.br

Valor do ingresso: R$ 30 (inteira) e R$15 (meia)

Estudantes, maiores de 65 anos e Clientes Ourocard pagam meia entrada.

Ingressos adquiridos na bilheteria do CCBB ou antecipadamente pelo site.

Funcionamento do CCBB Rio: segundas, quartas, quintas, sextas e sábados, das 9h às 21h; domingos, das 9h às 20h (fecha às terças).

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