Com uma abordagem muito à frente de seu tempo para pautas como a misoginia, a homofobia e o racismo, o conto Por que Desdêmona Amava o Mouro?, do norte-americano Tennessee Williams (1911-1983), foi publicado apenas em 2019 graças ao professor, dramaturgo e diretor estadunidense Tom Mitchell, que também adaptou a obra para o teatro. Agora, o público brasileiro pode conferir a versão inédita da peça, com direção de Noemi Marinho, que tem sua temporada de estreia no Sesc Santo Amaro de 11 de outubro a 17 de novembro, com apresentações às sextas e aos sábados, às 20h, e aos domingos e feriados, às 18h.
O texto tem tradução de David Medeiros e Luis Marcio Arnaut, que idealizou a montagem ao lado da atriz Camila dos Anjos, profunda pesquisadora da obra de Williams, e do ator Alfredo Tambeiro. Para completar o elenco, além dos três idealizadores, está a atriz Matilde Mateus Menezes.
Escrita provavelmente entre 1939 e 1943, a obra de Tennessee Williams está em vários rascunhos originais – a maior parte do texto tem o formato de um conto, no entanto, há partes trabalhadas em forma de roteiro para teatro e cinema. A obra teria sido abandonada pelo autor graças ao conselho de Audrey Wood, sua agente.
O motivo seria a presença de três personagens impensáveis para a sociedade conservadora estadunidense em plena Segunda Guerra Mundial: um homem negro com alto status social, uma mulher branca apaixonada, porém independente e que luta por seu desejo, e o amigo homossexual dela que não tinha traços caricatos ou um final trágico.
Por que Desdêmona Amava o Mouro? narra o inusitado romance entre Helen. uma famosa e solitária atriz de Hollywood, reconhecida como símbolo sexual, e Kip, um jovem e talentoso roteirista. Ela, uma mulher que exerce sua liberdade sexual, precisa lutar contra seu próprio preconceito e é obrigada a assumir seu desejo e sua paixão por esse homem negro e bem-sucedido. A condição humana naquela sociedade preconceituosa e misógina está, portanto, acima das questões de gênero e raça, em uma peça cuja abordagem é absolutamente contemporânea.
Personagens inconcebíveis para a década de 1930
Por ser um homem negro com um cargo prestigiado de roteirista de Hollywood, Kip é uma figura absolutamente inconcebível para a época, visto que as pessoas negras sofriam embargos racistas pela sociedade de então de fazer parte de um grupo tão importante e seleto, reservado apenas para pessoas brancas. A personagem, portanto, é um ponto fora da curva e sua presença na peça revela a estranheza dos seus pares profissionais no trato humano com sua raça, os preconceitos sociais e a própria surpresa da personagem ao se perceber em um mundo estranho ao seu.
As contradições da sociedade são expostas como uma ferida aberta e Tennessee Williams a espreme, levando a questão racial a um nível que poderia chocar naquele momento histórico e, assustadoramente, até nos dias atuais.
“É incrível imaginar que Tennessee Williams, um homem branco, nos anos 30, conseguiu imaginar e escrever com tanta elegância e sutileza, Kip. Esse homem negro de sucesso, que tem plena consciência da sua negritude, mas que não se deixa cair no glamour ilusório de Hollywood. Kip percebe que aquela parcela da sociedade branca, que ele se vê obrigado a conviver naquele momento, não o vê como ele realmente é e sim como mais um homem negro objetificado”, comenta o ator Alfredo Tambeiro sobre seu personagem.
Já a atriz Helen Jackson não só ultrapassa as barreiras das exigências étnicas, raciais, culturais e conservadoras de sua sociedade. Ela é retratada como uma mulher estadunidense típica do Sul, cheia de preconceitos, às voltas com uma paixão e uma atração sexual incontroláveis. A luta interior da mulher neste campo de batalha íntima é figurada com delicadeza e um pouco de humor, de forma a respeitar os limites tanto do negro quanto da mulher.
O que existe entre eles é arrebatador e, assim, o dramaturgo quebra as barreiras raciais e os preconceitos seculares com a força do amor, expondo apenas dois seres humanos comuns, tendo que lidar com seus próprios dilemas, suas próprias dificuldades em aceitar o que lhes acontece naquela sociedade nevrálgica, revelando que o problema é estrutural, está nas bases, na tradição, na educação, nos costumes.
Williams a retrata como uma mulher que se permite viver essa atração sexual, uma paixão que pode destruir sua reputação, sua profissão e sua moral, segundo os ditames da época – que exigia das mulheres o recato, o silenciamento, subserviência e obediência, anulando sua sexualidade.
Por fim, o terceiro personagem da peça, também inconcebível naquele momento histórico, é Renaldo, o melhor amigo e confidente de Helen. Um homossexual aberto, com trejeitos efeminados, portanto com um comportamento que destoa das atitudes de um homem heterossexual cis, o que era proibido de ser abordado na época pelos códigos censores.
Na verdade, o homossexual aparecia em algumas peças e em filmes hollywoodianos apenas como alívio cômico, com um comportamento estereotipado e preconceituoso que remetia a trejeitos efeminados. Williams faz esse retrato trágico-cômico, porém com tantas camadas que a personagem revela mais da sociedade e da história desses personagens naquele momento histórico do que a personalidade ou um aprofundamento psicológico de Renaldo.
Um dos pontos mais altos do texto é a forma como Tennessee Williams questiona o tão almejado “sonho americano”, desconstruindo a meritocracia e revelando as desigualdades enraizadas na sociedade estadunidense. “Ele frequentemente retrata personagens marginalizados, cujas vidas são marcadas pela luta, pela desilusão e pela falta de oportunidades. Ao invés de romantizar a ascensão social, expõe as estruturas de poder que perpetuam a desigualdade, questionando a noção de igualdade de oportunidades de brancos e negros na sociedade americana”, comenta Camila dos Anjos, que pode ser considerada uma das atrizes que mais atuaram em obras do autor norte-americano.
“O que mais me chama atenção é a sua contemporaneidade: após mais de 80 anos, questões que martelavam a consciência desse gênio da dramaturgia mundial, hoje já martelam a de muitas pessoas que começaram a se conscientizar sobre a opressão, preconceito e os contrassensos da sociedade capitalista. Talvez uma das histórias mais atuais do Tennessee. Um manifesto contra o racismo, a misoginia e a homofobia”, acrescenta Luis Marcio Arnaut.
Outra camada interessante da peça é, como o próprio título indica, uma referência ao clássico “Othelo, o Mouro de Veneza”, de William Shakespeare, mas ainda busca inspirações na peça “O Mercador de Veneza”, também do bardo inglês; no romance “Oliver Twist”, de Charles Dickens, e no conto “A Princesa”, de D. H. Lawrence.
Por que Desdêmona Amava o Mouro? é possível graças a um projeto contemplado pelo edital ProAc nº 01/2023 – Teatro/Produção de espetáculo inédito.
Ficha Técnica
Da obra original e inédita de: Tennessee Williams
Adaptação: Tom Mitchell
Tradução: Luis Marcio Arnaut e David Medeiros
Idealização: Luis Marcio Arnaut, Camila dos Anjos e Alfredo Tambeiro
Direção: Noemi Marinho
Assistente de Direção: Tati Marinho
Elenco: Alfredo Tambeiro, Camila dos Anjos, Luis Marcio Arnaut e Matilde Mateus Menezes.
Direção de Movimento: Erica Rodrigues
Cenário e Figurino: Chris Aizner
Iluminação: Wagner Freire
Direção Musical: Daniel Maia
Caracterização: Beto França
Operação de Luz: Luisa Silva
Operação de Som: Valdilho Oliveira
Cenotécnico: Alício Silva
Costureira: Judite Lima
Estagiária de Produção: Luisa Pamio
Assessoria de Imprensa: Pombo Correio
Social Mídia e Gestão de Tráfego: SM Arte Cultura
Fotos: Ronaldo Gutierrez
Projeto Gráfico: Raquel Alvarenga/Studio Janela Aberta
Administração Financeira e Prestação de Contas: André Roman e Camila dos Anjos
Produção Executiva: André Roman/Teatro de Jardim SP
Direção de Produção: Selene Marinho/ SM Arte Cultura
Coordenação Geral: Camila dos Anjos Produções Artísticas
Sinopse
Uma inusitada história de amor na década de 1930 entre Helen, uma solitária atriz de Hollywood, famosa e símbolo sexual, e o jovem, Kip, um roteirista talentoso, parece ser mais um romance que se repete entre tantos. Tennessee Williams, entretanto, apresenta um homem negro de sucesso e uma mulher branca promíscua às voltas com uma paixão avassaladora por ele. Ela precisa lutar contra seu próprio preconceito e é obrigada a assumir seu desejo e sua paixão por Kip.
Serviço
Por que Desdêmona Amava o Mouro?, a partir da obra de Tennessee Williams
Temporada: 11 de outubro a 17 de novembro
Sextas, às 21h. Sábados, 20h. Domingos e feriados, às 18h.
Sesc Santo Amaro – R. Amador Bueno, 505 – Santo Amaro, São Paulo
Ingressos: R$ 60 inteira | R$ 30 meia | R$ 18 Credencial Plena
Venda online em sescsp.org.br/
Classificação: 14 anos
Duração: 75 minutos
Capacidade: 274 lugares
Acessibilidade: Teatro acessível a cadeirantes e pessoas com mobilidade reduzida