Voltou ao Rio de Janeiro, na última sexta-feira, 24 de julho, para seis únicas apresentações no Oi Casa Grande, o espetáculo Beije Minha Lápide, com texto inédito de Jô Bilac, e com atuação de Marco Nanini, Carolina Pismel, Paulo Verlings e Renata Guida. A direção é de Bel Garcia e a peça é produzida por Fernando Libonati (Pequena Central).
A peça traz Marco Nanini em excelente interpretação do personagem fictício Bala, um escritor e profundo admirador de Oscar Wilde, que é condenado por ter quebrado a redoma de vidro que protege a lápide do escritor inglês. Bala está preso em um cárcere, viagiado constantemente pelo guarda Tommy (Paulo Verlings), que a tudo observa, mostrando-se uma companhia inicialmente admirada, em uma relação ambígua com o escritor condenado, assim como são as demais relações de Bala na história (com a filha, Ingrid, que trabalha no cemitério, e com a advogada, Roberta).
Se a história é ficção, o enredo é inspirado em elementos da realidade. Bala, assim como a lápide de Wilde, também é segregado do mundo por uma espécie de cela de vidro, como se fosse um assassino crudelíssimo e perigoso, desses que não se pode chegar perto (é possível lembrar de Hannibal, the Cannibal, em O Silêncio dos Inocentes, apesar de que, no filme com Anthony Hopkins, a cela não era de vidro, e ali sim talvez devesse ser, impedindo qualquer contato do criminoso com advogados, guardas, funcionários e visitantes). Talvez o personagem interpretado por Marco Nanini seja mesmo perigoso, pois não tem paciência com o comum, o óbvio e os hábitos da sociedade. Mistura, o tempo inteiro, aquilo que tem a dizer com o ditos de Wilde e, à certa altura, em um de seus devaneios, diz que uma ideia, se não for perigosa, não é uma ideia, em tácita referência ao escritor inglês. Bala tampouco se arrepende do que fez, ele não quer ser inocentado, não repensa sua violação. Em relação à advogada que insiste em defendê-lo, Bala a coloca à prova, para ver se está à altura de escrever uma carta a Oscar Wilde, com quem se confunde, e que ele irá ditar. Chega a avaliar suas unhas e sua caligrafia, ri de seu vestido, aponta sua arrogância, típica dos recém-saídos da faculdade. Em relação ao guarda, ele o ajuda com seus versos, opina acerca de sua tatuagem. Bala é tido como louco, e talvez a semelhança com a loucura seja de fato devida ao teor de suas ideias e à maneira como lida com sua inquietude.
Os diálogos que o personagem de Nanini tece com os demais personagens e os devaneios desesperados de quando está sozinho, momentos em que as ideias chovem como associações livres ou fluxos de consciência eivados de urgência e angústia, fazem denúncias ao moralismo de nossa sociedade, que, apesar de ter avançado em uma série de questões outrora controversas (como a que condenou Oscar Wilde à prisão), comparando-se à época de Joanna D’Arc, como o próprio Bala diz à certa altura, carregando na ironia e na irreverência, está muito melhor.
Mas será que está melhor? O quão melhor estamos, hoje em dia, com todos esses avanços? Talvez seja esse o perigo que Bala exala: como escritor, como gênio das ideias faladas e escritas, ele aponta o que não vai bem, ele cutuca as feridas abertas e as que estão supostamente fechadas, ele expõe o lodo que cobre o asfalto e, por isso mesmo, é admirado e respeitado, até por quem o odeia, como lembra sua advogada. Ele é persuasivo e sua capacidade crítica tem um poder de sedução que pode causar estragos. Assim como Oscar Wilde não está morto em seu túmulo cercado por um vidro protetor, dado que suas ideias circulam, são reproduzidas e enunciadas até hoje – e de fato não é um vidro que o isolará de uma sociedade que o ama e quer tocá-o, quer beijá-lo -, da mesma forma o personagem Bala, condenado ao isolamento, também não deixará de provocar impacto naqueles que o cercam.
Marco Nanini, Carolina Pismel, Paulo Verlings e Renata Guida conseguem trazer suavidade aos personagens e às relações que estabelecem entre si, produzindo risos apesar da profundidade que um texto que remete a Oscar Wilde necessariamente acaba por trazer. É possível ser tocado pelas ideias do ótimo texto de Jô Bilac e sair da peça com a leveza que as atuações inspiram.
Um elogio a mais deve ser feito à cenografia de Daniela Thomas, à concepção e direção de vídeo de Julio Parente e Raquel André e ao videografismo de Julio Parente, que transformam os momentos de solidão desesperada e fluxo de consciência do protagonista em uma vertigem que pode ser sentida pela plateia. São momentos em que é possível vivenciar a cisão do personagem através de suas ideias e de seus elementos de consciência, em que se vê o conflito que é constituinte de cada sujeito e que ali, na prisão, na cela, na condenação, fica ainda mais evidente, mesmo (ou ainda mais) para um gênio que não se arrepende do que fez, que debocha das leis e que quer do bom e do melhor, mesmo que sua fala se origine no cárcere. O desprezo que Bala dirige aos seus iguais não o protege desses momentos alucinantes de ansiedade e desespero, e a direção hábil de Bel Garcia consegue intercalar momentos de desconforto supremo (o volume elevado da música que vai pela cabeça de Bala, o volume altíssimo de seu desassossego) com a irreverência das interações entre personagens no palco.
FICHA TÉCNICA ::
Texto: Jô Bilac
Direção: Bel Garcia
Com: Marco Nanini, Carolina Pismel, Paulo Verlings e Renata Guida
Produção: Fernando Libonati
Cenografia: Daniela Thomas
Figurino: Antônio Guedes
Iluminação: Beto Bruel
Trilha Sonora Original: Rafael Rocha
Concepção e Direção de Vídeo: Julio Parente e Raquel André
Videografismo: Julio Parente
Coordenação e gestão de projeto: Carolina Tavares
Direção de Produção: Leila Moreno