A concepção de uma peça de teatro que traz um dos casos clínicos emblemáticos de Freud é uma proposta bastante interessante. Para os estudantes de psicanálise, analistas em formação ou leigos interessados no assunto, O homem dos ratos é um de seus casos clínicos icônicos e, portanto, bastante conhecido. O caso em questão trata, com perdão da síntese em máximo grau, da história da neurose obsessiva de um jovem obcecado com a imagem de ratos e preso em dúvidas recorrentes sobre o destino amoroso de sua vida. O espetáculo que encena o caso é Freud e o Homem dos Ratos, com direção, dramaturgia e atuação do psicanalista Antonio Quinet, que encena Freud e contracena com Igor O. Coelho, este atuando como o paciente Ernest Lanzer, vulgo homem dos ratos. A peça acaba de entrar em cartaz no Teatro Vannucci, no Rio, e busca, como Quinet diz, ao final da apresentação, ser parte dessa cadeia de transmissão da psicanálise, aqui, pela via dramatúrgica. Ele não fala tudo isso, nem exatamente isso, mas o sintetiza na palavra-chave transmissão.

Há muitos elementos interessantes na montagem, especialmente para quem gosta de psicanálise e, acredito, mais ainda para quem conhece o caso e tem aí a oportunidade de relembrar alguns de seus detalhes ou voltar a mergulhar nele. Para quem já teve a chance de ler um caso relatado por Freud, é sabido que há muitos detalhes envolvidos na história da formação dos sintomas e as sessões diárias permitiam um verdadeiro mergulho nas formações do inconsciente daqueles e daquelas que buscavam aquela novidade que era o tratamento psicanalítico. Cada imagem, cada memória, cada sonho podia ser efetivamente desdobrado e retirado como as camadas de uma cebola. Desse modo, na peça, o uso dos baldes prateados como objeto cênico bastante presente e que liga a memória do paciente aos usos pragmáticos que os contextos encenados pedem, como o do setting analítico, servindo ora de divã, ora de poltrona, ou evocando a imagem imensa de um pai em parte idealizado, ou ainda como púlpito para uma palestra é bem interessante, já que a escolha do balde não é aleatória, remetendo a uma das primeiras imagens traumáticas que o paciente traz. Outro elemento dinâmico interessante é a corporificação da dúvida do analisando através de seus movimentos de vaivém entre manequins, colocados nos cantos esquerdo e direito do palco, representando, pelas blusas neles colocadas, de um lado, a moça rica escolhida pela família e, de outro, a moça pobre escolhida pelo afeto. O mesmo movimento será, em cena posterior, combinado com o do próprio pai do paciente, também mobilizado pela dúvida, e que Quinet encarna, numa coreografia que traduz a agonia da dúvida em uma imagem de desespero, e que demora a se resolver, se é que se resolve – aqueles típicos movimentos em looping, sem sentido, que parece que nunca cessarão.
No entanto, a ideia propõe um desafio de peso: os casos clínicos longos de Freud não são uma leitura exatamente fácil, ainda que ele fosse reconhecidamente um excelente escritor. Os textos são densos, trazendo inúmeros detalhes da vida do paciente e das sessões, bem como alguns comentários teóricos e hipóteses metapsicológicas que costuram as suposições clínicas construídas por Freud. Resta, então, a pergunta: como fazer essa passagem do texto ao palco, presumindo-se corpo, movimento, voz e, claro, uma plateia e uma linguagem diversa? Acredito que é nessa passagem que reside uma limitação da peça. Inspirar-se em um caso clínico, viabilizá-lo artística e dramaturgicamente é fazer escolhas entre o que seria interessante manter do conteúdo textual e o que talvez pudesse ser suprimido, a bem de o espetáculo não se confundir perigosamente com uma aula. Fazer tais escolhas e buscar seu encaminhamento, nessa articulação entre texto e teatro, está longe de ser tarefa simples, e há um risco importante: no afã do purismo, do rigor conceitual pertinente a muitos espaços, e acreditando-se realmente que há a possibilidade de uma transmissão da psicanálise (desculpem a polêmica, mas ela é inevitável), enveredar-se por um excesso pedagógico.

Talvez a dramaturgia de Freud e o homem dos ratos ganhasse muito mais com a edição dos momentos explicativos, seja aqueles recortados pela encenação de uma conferência, seja os reservados a intervenções avulsas de Quinet, meio que na pele de Freud, meio que sendo ele mesmo. Será que pensar a transmissão pela via do teatro não demandaria encontrar meios em que dramatizar as sessões do homem dos ratos, por si, sem didatismo ou notas de rodapé, pudesse ser suficiente para suscitar a curiosidade da plateia? Ao fazer as escolhas da passagem de texto à dramaturgia, surgem precisamente essas perguntas: o que dos relatos do paciente, das intervenções de Freud, das imagens e dos objetos cênicos pode estimular, naqueles e naquelas que assistem ao espetáculo, em termos de pensamento, curiosidade e imaginação sobre a psicanálise e a dinâmica inconsciente? Transmitir ou instigar? Certamente, é importante lembrar que a peça é para iniciados, por assim dizer: o texto é denso, o léxico é psicanalítico e as brincadeiras são piadas internas à psicanálise – acha-se graça se há familiaridade com esse universo. Dessa forma, torna-se desnecessário embutir as explicações, que atrapalham o que há de teatro na proposta. E, sim, há bastante teatro interessante no espetáculo de Quinet.
Ficha técnica:
Dramaturgia de Antonio Quinet baseado no texto de Sigmund Freud sobre o caso do Homem dos Ratos.
Direção: Antonio Quinet
Elenco: Antonio Quinet e Igor O. Coelho
Direção musical: Alexandre Marzullo
Direção de movimento: Dani Cavanellas
Cenário: Antonio Quinet
Iluminação: Vilmar Olos
Figurinos: Cia. Inconsciente em Cena
Preparação vocal: Rose Gonçalves
Assistentes de direção: Patrícia Batitucci e Rafael Telles
Assessoria de imprensa: Catharina Rocha e Paula Catunda
Mídias digitais: Breno V. Costa
Produção: Atos e Divãs Produções
Produção executiva: Wagner Uchoa
Realização: Cia. Inconsciente em Cena
Apoio: INSTITUTO ESPE
SERVIÇO
Espetáculo: “Freud e o homem dos Ratos”
Temporada: de 27 de março a 8 de maio de 2025
Apresentações: toda quinta-feira, às 20h30.
Teatro: Teatro Vannucci | Shopping da Gávea
Endereço: Rua Marquês de São Vicente 52 – 3° Andar
Ingressos: R$ 120 (inteira) e R$ 60 (meia)
Duração: 70 min.
Classificação indicativa: 16 anos
Vendas on-line pela Sympla
Comente!