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Uzumaki: A Espiral do Horror – o equilíbrio de idéias opostas na mescla perfeita de hipnose e repulsa

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A espiral é uma forma única cuja beleza hipnotizante faz-se presente em várias culturas ao redor do globo. Sua forma traduz ideais opostos – a evolução e o progresso; a involução e o regresso – em um serpentear nitidamente paradoxal, é a dualidade inerente ao conceito puramente cabalístico, onde sua completude simboliza a união e o todo; a vida e a morte.

Assim como seu subtítulo permite inferir, Uzumaki: A Espiral do Horror retrata as peculiaridades e os mistérios que cercam os mais variados significados deste símbolo tão único, mas, ao contrário do que tal idéia possa provocar em um primeiro momento, a obra concentra-se em manter o terror psicológico em seu cerne, mascarando de forma inteligente o fator filosófico que poderia acompanhar uma reflexão mais profunda, automática e obrigatória sobre as características discorridas no parágrafo anterior. Aparenta ser puramente uma obra de horror gore, concebida para provocar um misto de nojo e interesse a quem se aventurar por essas páginas; todavia, traçando um paralelo metafórico com o próprio desenho místico da espiral, é possível percorrer mais profundamente suas linhas retorcidas – ignorando o traçado de topo – e atingir uma interpretação mais profunda sobre as macabridades discorridas ao longo das páginas deste título, caso o leitor esteja realmente disposto a fazê-lo. Tal estratégia, sendo proposital ou não, atrai os dois tipos de público deste nicho em comum: os interessados em tal aprofundamento e os que desejam apenas uma obra de terror, digamos, corriqueira.

Uzumaki é de autoria do mangaká de terror Junji Ito e foi publicado originalmente entre 1998 e 1999 na revista Big Comic Spirit em três volumes. A história se passa em uma pequena cidade fictícia no interior do Japão, onde estranhos acontecimentos assombram a população local – todos possuem um sinistro elemento em comum: a forma espiral. Tudo tem início aparente com a fixação doentia do sogro da protagonista Kirie por espirais, onde o mesmo mantém uma coleção deveras incomum sobre todo o tipo de objeto que possui a espiral como desenho base; seja um casco de caracol ou uma mola, por exemplo. A atração do homem pela forma é tamanha, que ele começa a tentar reproduzir este símbolo em seu próprio corpo. Se você imaginou alguma espécie de tatuagem formando desenhos de espirais, esquece. As representações, neste caso, são feitas completamente desprovidas do auxílio de qualquer ferramenta, ilustrada bem claramente pela perturbadora imagem abaixo.

Os desenhos de Junji Ito são arquitetados para chocar a quem os contempla. O autor praticamente se especializou em um estilo próprio de horror corporal, exibindo um traçado preciso e uma técnica de sombreamento que flui no mesmo ritmo do terror demandado pelo argumento. O mangaká abusa dos traços, dando um aspecto encorpado, imponente e aterrorizante às suas concepções. Seus personagens são sempre bem expressivos e estampam desenhos ricos em detalhes. O artista parece possuir um dom especial para imaginar e retratar o rosto aterrorizado dos personagens. Infelizmente, parece que apenas para o caso de Kirie, a técnica de Ito está um pouco aquém da composição da personalidade vazia da protagonista.

Embora mantenha um aspecto procedural em seus dois primeiros volumes, onde a personagem orelha Kirie narra suas experiências em histórias independentes entre si – o estilo de Ito lembra muito a estrutura de contos; não por acaso, o autor já confessou em uma entrevista ter como influência H. P. Lovecraft, daí a grande dose de terror psicológico de suas obras e essa estrutura episódica vista em Uzumaki. A obra descreve outro movimento no volume final, onde cada capítulo se complementa para formar uma história mais profunda, completa e detalhada – possuindo o caráter revelador que a trama demanda, sem perder os elementos do terror bizarro apresentados anteriormente.

Parece haver, ao longo dos 20 capítulos da obra, uma constante tentativa por parte do autor de surpreender o leitor com uma situação mais macabra e horrenda que a cena da página anterior, o que acaba provocando o inesperado efeito de curiosidade hipnótica até nos menos aficionados pelo gênero. Certamente um dos pontos altos do título é o apelo ao macabro, o que, por vezes, faz do enredo um completo coadjuvante em determinadas passagens. Ito consegue mesclar muito bem o terror puramente contido na idéia – que é mais forte no campo do imaginário que na retratação física, estilo característico de Lovecraft – e sua própria representação em imagem, materializada em uma bela arte que faz do corpo humano uma verdadeira “massa de modelar”; um paradoxo que coincidentemente converge mais uma vez para um dos significados da espiral, a dualidade.

Em uma análise mais fria, é possível encontrar algumas falhas de roteiro que incomodam os mais exigentes, principalmente sobre a personalidade unidimensional que governa as atitudes da protagonista, fazendo-as, por vezes, soar apáticas e inverossímeis para com as diferentes situações impostas pelo enredo. Continuamente Kirie é surpreendida com situações atrozes e mesmo assim cisma em manter uma consciência que beira a indiferença, algo completamente improvável para qualquer ser humano que se pusesse a experimentar tais vivências. Em quase cem por cento dos casos, Suichi – o namorado de Kirie e o verdadeiro herói da história – é o responsável por salvar a vida da protagonista, em um constante exercício de manter-se são em meio a toda aquela atmosfera tétrica, principalmente após os acontecimentos que o atingem nos dois primeiros capítulos. Durante diversas vezes Suichi sugere que é necessário deixar a cidade o quanto antes, e quando finalmente Kirie decide por fazê-lo, ambos descobrem já ser tarde demais.

Um dos significados da espiral diz respeito ao fato do tempo se retorcer sobre si mesmo, fazendo com que pontos se encontrem e se afastem – fundindo o início e o final de um caminho. Isso explica as passagens do capítulo 17, onde os personagens tentam escapar da cidade pelas montanhas e acabam por viajar no tempo e retornar ao ponto de partida, como se viajassem durante meses em círculo. A alegoria também está associada aos astros e à Lua (como bem ilustrado no último capítulo, intitulado, Galáxias), à água (outro elemento recorrente materializado por um lago local chamado Dragonfly), ao feminino (exemplificado pelo fato de tudo girar em torno de uma personagem feminina, Kirie), à fertilidade e à evolução (temas discorridos de forma brilhante nos perturbadores capítulos 11 e 8, respectivamente), entre muitos outros significados. É possível continuar traçando esse tipo de paralelo para os elementos mais obscuros da obra; sejam eles temas chave de algum capítulo; discurso ou imagem concebida pelo autor.

Ao que parece, Uzumaki peca sim em ter bons personagens, mas não traz em sua proposta tê-los. É eficaz ao criar um ambiente de horror interessante, correlacionando inúmeros significados de um signo natural às situações de terror centradas na forma do corpo humano – praticamente uma assinatura do autor. Apresenta-se breve o suficiente para quem busca uma leitura rápida e profundo o bastante para quem busca uma discussão posterior à leitura. Altamente recomendável para qualquer fã de quadrinhos adultos, mesmo aos que não agradam tanto da estética simplista dos mangás.

Uzumaki foi lançado oficialmente no Brasil em 2006 pela Conrad.

[xrr rating=4/5]

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