Todos os anos a pequena cidade de Arles, na região da Camarga na França, recebe um dos mais importantes festivais de fotografia do mundo: Les Rencontres d’Arles. De julho a setembro a cidade se transforma em um pólo artístico-fotográfico com diversos espaços expositivos, cada um com uma configuração curatorial diferente, refletindo tendências criativas, revelando talentos desconhecidos e promovendo encontros e reflexões.
Em 2023, tive a sorte de conseguir, mais uma vez, estar presente para conferir várias das exposições. Como cheguei na última semana, já em setembro, muitas já haviam fechado. Apesar de perder o rebuliço da primeira semana, cheia de eventos, visitas guiadas, conversas com os artistas e o circuito off, há algumas vantagem de ir em setembro. Uma delas é que a temperatura está mais amena. Andar pelas ruelas estreitas e partilhar dos espaços lotados de visitantes durante o ápice do verão não é fácil. Muitos dos locais expositivos são construções antigas que não contam com ar condicionado, então o calor pode ser insuportável. Além disso, a cidade fica cheia, tornando a busca por estadias baratas ou, no meu caso, por “ couchsurfing”, mais difícil. E mesmo com menos exposições para ver, ainda assim, são muuuuitas e pode levar dias pra conseguir ver tudo.
Ao longo dos 4 dias em que estive ali, visitei pelo menos 18 exposições. Neste breve artigo irei falar sobre algumas de minhas preferidas e percepções que obtive a partir da experiência em Arles.
Primeiramente, listar as favoritas. Tarefa sempre difícil, mas vamos lá.
Sem ordem de preferência, as 5 exposições que mais gostei foram:
La Pointe Courte, das fotografias ao filme / Assemblages / Hoja Santa / Sosterskap / 6a edição do Prêmio Dior da Fotografia e das Artes Visuais para Jovens Talentos
Agnès Varda estava com duas exposições. Uma delas exibia fotos suas realizadas em Sète, cidade na Região da Occitânia, no sul da França, e um dos lugares mais amados pela diretora. Tão amado que ela dizia ter adotado a cidade como local de nascimento afetivo. Tendo se iniciado na fotografia em 1947, a artista usou as paisagens, personagens e ritos da cultura local como fonte de inspiração para sua prática. Não por acaso este acabaria sendo o cenário de seu primeiro filme de longa metragem: “La Pointe Courte” , de 1954.
A exposição revela não apenas imagens que eventualmente fariam parte do universo afetivo envolto no filme como também nos permitem acompanhar o percurso e a evolução técnica da jovem fotógrafa. Além disso, evidencia a importância dos laços afetivos e da subjetividade na obra da diretora desde o princípio de sua ventura artística.
A segunda exposição presta homenagem à Varda. O polivalente curador Hans Ulrich Obrist reuniu todas as entrevistas que havia filmado com a diretora entre 2002 e 2019 e outros registros de suas aparições públicas e distribuiu estes vídeos em uma única sala. Cada um em uma televisão de tubo, em Looping, com uma cadeirinha na frente. Uma sala imersiva dentro do universo de Agnès. Uma imensidão de sabedoria, bom humor, carinho e vida. Passei algumas horas nesse jogo das cadeiras, pulando de vídeo em vídeo. Alguns eram mais inspiradores que outros, mas todos interessantes. Em uma das entrevistas, Hans perguntava o que ela achava das Utopias, ao que ela respondia não ser tão adepta, mas mais interessada nos sonhos. É impressionante observar a clareza e a poesia contidas em seu pensamento e sua fala, transmitida de modo totalmente espontâneo e generoso. Agnès nunca parecia estar usando uma máscara, nunca parecia estar performando para a câmera ou tentando fingir ser alguém que não era. Foi um prazer imenso poder partilhar de suas ideias, experiências e pensamentos por algumas horas.
No Palais de L’ Archevêché, um monumento histórico datado do século 18, estava a exposição “Assemblages” com obras de Saul Leiter, importante fotógrafo e pintor estadunidense. A exibição, curada por Anne Morin, contou com quase 180 obras incluindo pinturas, fotografias PB e coloridas, de diferentes períodos de sua vida, abrangendo o universo nova iorquino famosamente capturado pelo artista e retratos de seu acervo pessoal mais íntimo.
O que mais me chamou a atenção foi exatamente o trabalho curatorial, que conseguiu trazer uma amostra bastante completa de sua obra, ao mesmo tempo em que evidenciou a profunda conexão entre a prática fotográfica e a da pintura. Leiter mesclava os princípios de cada técnica, desde a busca por camadas nas cenas que preenchiam seu olhar/seu entorno até às intervenções diretas nas imagens impressas, de modo a criar imagens que indagassem os limites entre superfície e profundidade. Não parecia lhe interessar tanto tanto a captura de cenas do tipo “instante decisivo” e diferente de muitos outros fotógrafos famosos que parecem explorar a relação entre os vários planos da imagem quase por virtuosismo, Leiter estava interessado na simplicidade e na plasticidade visual acentuada pelo contraste entre os planos. Reflexos, vidros embaçados, pontos coloridos destoantes na paisagem, flocos de neve, longas extensões de asfalto, tudo isso lhe chamava a atenção e servia de base para compor e pintar a imagem com o olhar.
Hoja Santa (Folha Sagrada), exposta no prédio da Croisière, é um projeto da artista polonesa, baseada no México, Maciejka Art. O livro homônimo ganhou o prêmio DUMMY BOOK AWARD na edição do Festival de Arles em 2022 e está agora sendo publicado pela editora Actes Sud. O trabalho é resultado de uma jornada de Maciejka dentro de uma comunidade matriarcal de Costa Chica, no sul do México, que abriga um universo pleno de ritos, magia e sintonia com a natureza. Após visitar e conhecer a cidade, suas personagens e paisagens por três anos, a fotógrafa deu corpo a um rico trabalho composto por fotografias, pinturas e colagens no intuito de trazer a energia do encantamento que ali sentia. O ambiente expositivo trouxe uma seleção linda das imagens construídas artesanalmente pela artista, exibidas em paredes pintadas de preto e um desenho de luz mais baixo que ajudaram a criar uma atmosfera de mistério.
Já Sosterskap (“Sororidade”) trouxe o trabalho de 17 artistas nórdicas contemporâneas, todas mulheres e pessoas não binárias da Suécia, Noruega, Finlândia, Islândia e Dinamarca, incluindo Emma Sarpaniemi cuja obra “Auto Retrato de Cindy” acabou sendo escolhida para Capa do Rencontres d’ Arles deste ano.
Dentre as temáticas abordadas por Ikram Abdulkadir (1995), Jeannette Ehlers (1973), Fryd Frydendahl (1984), Bente Geving (1952), Hallgerður Hallgrímsdóttir (1984), Annika Elisabeth von Hausswolff (1967), Heiða Helgadóttir (1975), Hilde Honerud (1977), Tuija Lindström (1950–2017), Monika Macdonald (1969), Hannah Modigh (1980), Eline Mugaas (1969), Raakel Kuukka (1955-2022) & Yeboyah (1996), Emma Sarpaniemi (1993), Lada Suomenrinne (1995) e Verena Winkelmann (1973) podemos ver questionamentos em torno do imagético da identidade feminina; a observação de formas contemporâneas não convencionais de expressar individualidade entre os jovens; investigações em torno da relação dos pais com seus filhos durante a licença paternidade; retratos de mulheres em situação de rua; e vários outros. Além nos dar um panorama da prática fotográfica na região escandinava que abrange abordagens documentais, autobiográficas e conceituais, a exposição reflete sobre o contexto sócio político relacionado ao estado de bem-estar, assumido como modelo de igualdade para países por todo o mundo.
Finalmente, a 6a edição do Prêmio Dior da Fotografia e das Artes Visuais para Jovens Talentos, que ocorreu mais uma vez no prédio da LUMA, trouxe abordagens entre a fotografia mais tradicional, a vídeo performance e a fotografia expandida.
Destaco os nomes de Aaryan Sinha, Andras Ladocsi, Jermine Chua, Lucia Morón e Iris Millot, esta última vencedora do prêmio.
Iris vem realizando um trabalho super sensível sobre, a partir de e com sua avó, uma figura que foge dos padrões tradicionais femininos, sobretudo para sua época. O conjunto me chamou atenção não apenas pela qualidade das imagens, mas sobretudo pelo caráter de co-criação, recheado de respeito, admiração e afeto.
Por último, vou mencionar outras 3 exposições que também gostei bastante:
Casa Susanna, no Espaço Van Gogh, traz uma enorme coletânea de imagens de homens em drag durante os anos 50 e 60. As fotos, recém descobertas em um mercado de pulgas, mostram diversas personagens que se reuniam em um espaço criado por um casal para exercitarem, de modo discreto e seguro, seu desejo de se vestirem de mulher e exercerem sua persona feminina. Dois dos pontos mais interessantes da exposição são: a noção de comunidade formada a partir destes encontros e a diversidade do grupo, que contava com homens héteros e gays com motivações e desejos diferentes em relação à prática, o que acabou até mesmo por provocar preconceitos entre eles na busca por aceitação ou reivindicação por direitos.
Ne m’oublie pas, organizado pelo colecionador Jean-Marie Donat, organiza e expõe milhares de retratos 3×4 de imigrantes que cruzaram o mediterrâneo, do continente africano para chegar à França. Todas as fotos, realizadas em um pequeno estúdio em Marselha, cidade portuária do sul do país, compõe um retrato maior e mais universal em torno da imigração e da época.
Les enfants du fleuve, exibida no Jardin d’Été, um jardim público de Arles, conta com imagens realizadas por Yohanne Lamoulère quando navegava contra corrente pelo Rio Rhône em seu barco “Anita”, construído a partir de materiais recuperados. Suas fotografias mostram personagens excêntricos e cenas poéticas que foi encontrando no caminho de sua jornada. As fotos e a ideia do projeto me lembraram um pouco o famoso trabalho do norte americano Alec Soth, em torno do Rio Mississipi.
Bom, é isso. Esta foi apenas um breve recapitulativo das minhas exposições favoritas. Se você tiver interesse em saber mais sobre o Festival ou os artistas, sugiro pesquisas individuais dos artistas e seus projetos. Segue também o link para consultas no site oficial: https://www.rencontres-arles.com/fr/editions/view/95/edition-2023/
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