Em um mundo que já foi explorado de ponta a ponta, a única área misteriosa remanescente é o grande buraco chamado de “Abismo”. Criaturas muito estranhas e bizarras habitam as profundezas desse imenso buraco do qual não se conhece o fundo e também encontram-se relíquias que não podem ser feitas pelos humanos atuais.
Os mistérios do Abismo fascinam as pessoas e as levam a buscar aventuras. Com o tempo, esses aventureiros que desafiaram esse grande buraco inúmeras vezes passaram a ser chamados de “exploradores de cavernas”. Riko, uma órfã que vive na cidade de “Orth” à beira do Abismo, sonhava em se tornar uma grande exploradora de cavernas como sua mãe e desvendar os mistérios do Abismo. Certo dia, Riko encontrou e acolheu um robô com a forma de garoto enquanto fazia explorações…
O primeiro volume de Made in Abyss segue um modelo que seu mangaka, Akihito Tsukushi, impressionante tanto em sua versão em papel quanto em sua adaptação animada. Uma história de contrastes, daquelas que nada é o que parece ser e que vai despertar em mais de um leitor neófito, além de reconciliar outros tantos com a essência aventureira que se perde com a maturidade.
Made in Abyss aparece no Web Comic Gamma da Takeshobo, conhecido portal que trouxe a irreverente Pop Team Epic. O ano era 2012, sendo o primeiro êxito de seu autor, Akihito Tsukushi, que até então só teria publicado um títuli. E podemos dizer e considerar que a história do Abismo é uma verdadeira ópera aventuresca.
Tsukushi triunfa com Made in Abyss graças a vários fatores que misturados só podem resultar em enorme sucesso. História, narrativa, universo, arte e mensagem andam de mãos dadas de maneira especial, conseguindo unir estilos que em princípio são antitéticos entre si, mas sob sua direção conseguem se encaixar como as engrenagens de um relógio para atrair o atenção do leitor, deslumbra-o e depois surpreende-o constantemente ao mesmo tempo que lhe desperta sensações há muito esquecidas. E é que Made in Abyss entra pelos olhos desde o primeiro segundo, seja por seu estilo artístico peculiar e característico, seja pela narrativa que propõe.
A narrativa começa em Orth, uma curiosa cidade que surgiu quase sem querer em torno de uma descoberta que significa tudo para o cenário de Made in Abyss: o Abismo. Uma fissura misteriosa, com cerca de um quilômetro de raio e mais de 20.000 metros de profundidade, na qual começou a ser detectada a presença de artefatos enigmáticos e poderosos, que se tornaram a principal fonte de vida, conhecimento, cultura e riqueza para o povo de Orth e do mundo em geral. Inúmeros exploradores se aventuram no Abismo para conseguir uma dessas peças, seja para o bem comum, seja para o egoísmo do ser humano que quer esculpir seu nome na história.
Entretanto, o preço para entrar no Abismo não é exatamente barato, a”Maldição do Abismo ” é uma doença que causa desconforto, dores de cabeça, vômitos e afins, mas que se torna cada vez mais perigosa a ponto de quem se aventura nas últimas camadas o faz sabendo que está assinando sua sentença de morte.
Além da doença, também temos a multiplicidade de espécies selvagens e agressivas que vivem no seu interior, além da periculosidade dos vários ecossistemas que variam de camada para camada. Mas sem dúvida, dentro do grande número de grupos que baseiam suas vidas na existência do Abismo, os mais conhecidos e espetaculares são os Exploradores das Profundezas, grupos de pessoas organizadas em torno de uma hierarquia que, desde a infância, se preparam para entrar as profundezas do Abismo e descubra seus segredos.
Dentro deste grupo encontramos uma escala de poder e capacidades baseada nas cores de seus símbolos, os apitos. Assim, um Apito Vermelho seria um aprendiz que só pode entrar nas primeiras camadas do abismo; um Azul é um explorador um pouco mais experiente que pode aumentar essa profundidade; um Apito da Lua seria um instrutor tentando ensinar aos aprendizes os benefícios e perigos do Abismo e da exploração; um Apito Negro é um mestre explorador com a habilidade de alcançar a camada intermediária do Abismo; e por último, um Apito Branco é um explorador de lendas, aqueles que sacrificaram suas vidas para alcançar as últimas camadas do Abismo e descobrir os artefatos mais incríveis.
Em torno desta hierarquia e deste grupo de exploradores encontramos os nossos principais protagonistas, liderados por Riko. Riko é uma menina de cerca de 12 anos, filha de um dos Apitos Brancos, a mais lendária da história que desapareceu no Abismo há algum tempo.
O maior sonho de Riko é se tornar uma Apito Branco como sua mãe, então em uma de suas primeiras escavações como um apito vermelho tenta fazer o seu melhor e coletar muitos artefatos para que possa ir mais fundo mais rápido. Porém, sua audácia é interrompida quando é atacada em uma das primeiras camadas por um dos perigosos monstros que habitam o Abismo, e tanto quanto um de seus amigos são resgatados por Reg, um garoto estranho, parte humano e parte robótico, que parece vir do fundo do Abismo e que perdeu a memória.
Em relação a construção de um cenário/narrativa Tsukushi faz um trabalho tremendo, com uma multiplicidade de detalhe, riqueza e nuances já deste primeiro volume, criando um mundo vivo, um mundo com passado, presente e futuro, que prende o leitor e o cativa desde o primeiro momento.
O mundo de Made in Abyss atesta esse contraste que toda a obra apresenta. Por um lado, temos uma sociedade e uma hierarquia bem definida, tão coerente e lógica dentro da realidade, com pessoas exercendo suas profissões, com uma cultura, com uma ciência e normas compreensíveis dentro de seu mundo; e do outro lado temos a atração magnética e perigosa do Abismo e seus artefatos, do embate que ocorre entre realidade e fantasia. Esse mundo e essas sensações são captados de forma brilhante no volume, e é surpreendente que o autor tenha a enorme capacidade de fazer seu leitor entender como funciona um universo tão rico em nuances em poucas páginas, e ao mesmo tempo deixe a porta aberta para o mistério, para a exploração, para a aventura.
Nesse sentido , Tsukushi usa muito seu grande domínio da narrativa e sem recorrer em nenhum momento a um narrador, tão comum nesse tipo de história, e pelo contrário, apresenta tudo para nós como se fôssemos nós mesmos, mais um dos exploradores da história, no mais puro estilo de obras como A ilha do Tesouro.
Tsukushi nos apresenta os personagens e explica o mundo e a situação em que nos encontramos como se fôssemos, como Reg, um dos recém-chegados a esse Orth que fica na periferia do Abismo, e por isso sentimos a mesma curiosidade e o mesmo respeito por todos os elementos da obra como protagonistas da mesma. Algo que ajuda imensamente pela vivacidade e ambientação e sensações que a obra gera no leitor.
Made in Abyss é um mangá bastante curioso, único sem dúvida e com uma personalidade especial em seus designs e em sua execução. O autor brinca com seu estilo de desenho e com a apresentação de personagens inocentes/infantis e o fato de depois confrontá-los com situações que caberiam muito mais a personagens mais maduros. O mangaká é um tanto complicado nesse sentido, pois embora os protagonistas já estejam na adolescência ou pré-adolescência (em torno de 12-13 anos), sua representação os faz parecer muito mais jovens, então certas situações deixam o leitor bastante confuso. Mas além disso, a verdade é que Tsukushi faz um trabalho espetacular com o lápis, com um estilo que parece quase esboçado, mas orgânico, com sua infinidade de traços e um uso de iluminação que deixa você sem palavras.
E é que Made in Abyss é isso, um mangá surpreendente, que impressiona muito se você o abordar sem saber muito mais do que uma breve sinopse e sua capa, te pega desprevenido e te desarma. É uma alegria poder desfrutá-lo em nosso país nas mãos de uma brilhante edição deIvreaque, apesar de ter sido obrigado a rezar mais do que o necessário, teve um resultado excepcional. Houve alguma polémica nas redes sociais em torno da escolha da cor e tipo de letra para a lombada do sobrecapa, algo bastante absurdo se tivermos em conta a qualidade geral da edição.
Não só em termos de formato, que nos chega idêntico à versão japonesa com um tamanho igual ao de uma edição kanzenbanpelo preço de 9,90€, mas sobretudo pelo enorme trabalho de diagramação e rotulagem que teve de ser feito. Se você tiver o volume em mãos, veja a quantidade de texto fora do balão de fala, desenhos dentro dos balões de fala, a adaptação de onomatopeias, o uso de fontes… Um trabalho titânico de diagramadores e marcadores, como bem como uma grande obra de tradução que não merecia, de forma alguma, ser reduzida à cor da lombada da sobrecapa. Realmente temos muita sorte de ter profissionais de qualidade nas editorias e que nos enviam edições de qualidade.
Alguns de vocês devem conhecer Made in Abyss por sua versão anime, que mantém todos os benefícios do mangá, mas acrescenta o impacto visual da animação e a trilha sonora espetacular. Esta versão física perde isso, mas ganha uma pausa maior no ritmo narrativo que permite aproveitar mais os detalhes e o mundo do Abismo, e gera um sentimento de empatia e pertencimento à história que pode ter um maior impacto. do que na versão animada. E o resgate daquela fantasia que levou a viver uma grande aventura dentro das páginas e aquela sensação de querer chegar ao fundo do Abismo e descobrir todos os seus mistérios. Um mangá que faz você se conectar novamente com o jovem que todos temos dentro, mas sem a necessidade de criar um contexto sentimental ou infantil para isso, pelo contrário, contextualizando tudo em um mundo maduro e muito bem construído.
NOTA: 9,0
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