Jogo Aberto, com texto de Jeff Gould e tradução e direção de Isser Korik, é uma comédia. Assim está escrito e as pessoas reagem como tal, rindo até nos momentos supostamente trágicos do espetáculo, o que já acende a luz amarela de que algo está errado. Muito errado. O que me motivou a escrever este texto sobre a peça foram os inúmeros clichês e preconceitos que ela carrega, apenas para que os realizadores do espetáculo reflitam sobre o conteúdo do que trazem aos palcos.
A peça começa com uma cena quente que pode atrair muita gente: um homem e uma mulher no que parece ser o início de uma cena de sexo. Até aí ok. O que me pergunto, entretanto, é a necessidade de que a cena seja levada a cabo da forma como foi feita, com a nudez da atriz (ainda que de costas), que vai tirando as duas únicas peças de roupa que veste, com forte iluminação incidindo sobre ela, enquanto rebola e tudo mais.
Estamos ou não num teatro? É possível o uso de criatividade para que a dramaturgia explore de modo diferente a cena inicial? É possível uma cena de sexo diferente da forma como a de Jogo Aberto foi feita? Conservadorismo da minha parte? Chamem do que quiser. Realmente, qualquer tipo de nudez, se não tiver um propósito claro dentro da cena, do contexto, da dramaturgia, seja no teatro, seja no cinema, nada mais é do que apelação. E geralmente é sempre uma exploração da nudez feminina, o que torna a coisa muito pior e mais incômoda.
A frequência de cenas desse tipo, com intuito claramente apelativo, é sempre com a utilização do corpo da mulher. Os homens mais avançadinhos, que se acham não-machistas, não conseguem percebê-lo e defendem muitas dessas cenas como sendo arte. Recentemente a polêmica da cena de “O último tango em Paris” voltou à baila, e há os que acham que o abuso sexual de Maria Schneider – infelizmente eternizado na cena da manteiga (sem que ela soubesse), numa conivência abusiva e perversa entre Marlon Brando, Bertolucci e a equipe – serve ao propósito artístico. Felizmente, esses são minoria.
Por outro lado, o filme Ninfomaníaca, de Lars von Trier, pode ser considerado como genial. Ali há nudez, mas com propósito, e de ambos os sexos. Num raro filme que não se presta a nenhum tipo de intenção outra, a nudez do homem é explorada de modo incansável, mulheres e homens estão quites finalmente. E eu garanto: não serão todos os homens que suportarão algumas cenas em que o corpo masculino é explorado de modo evidente. Uma oportunidade e tanto para que eles sintam na pele o que muitas mulheres (aquelas que são honestas consigo mesmas) sentem ao ver, constantemente, os corpos de outras mulheres seminuas em novelas, seriados de meio de tarde, programas de auditório e todo o resto, explorados na televisão.
A pergunta não quer calar: por que é tão banal e naturalizado que, em programas de Faustão, Chacrinha nos anos 80, Miéle nos anos 90 e genéricos, haja um conjunto de dançarinas com roupas coladas e nunca um conjunto de dançarinos, homens, com roupas justas, recebendo closes invasivos o tempo inteiro? Por que a família vê isso na sala, reunida, sem constrangimento, mas condena o homossexualismo, o orgulho gay, a marcha das vadias, o poliamor e todo o resto? A partir da primeira cena de Jogo Aberto, já fiquei de má vontade com a peça inteira, que poderia até ter me surpreendido, porém, infelizmente, só fez confirmar, ao longo de inacabáveis 90 minutos, sua qualidade de ruim a péssima.
A peça gira em torno de três casais que se encontram na casa de um deles para um jantar, após seus problemas conjugais serem evidenciados nas primeiras cenas. O jantar será o lugar onde os ressentimentos ficarão expostos e virão à tona. Seria uma premissa interessante, ainda que não original. Basta uma boa exploração do texto e da direção. Mas não.
A dramaturgia engessada que, em certo momento, vai focando cada dilema de cada casal, e que não termina nunca, quando já estamos cansados de entender os pontos colocados, parece sublinhar ainda mais os clichês machistas que se resumem a: o homem é poligâmico por natureza e só pensa em sexo; a mulher é, de modo geral, o seu oposto e é uma chata, de modo geral. Pode não ser essa a ideia da equipe, do diretor e até do autor, mas essa é a mensagem que é constantemente reiterada.
É claro que personagens caricatos ou mesmo personagens que carregam idiossincrasias e ideologias bem diferentes daquelas dos autores podem ser muito interessantes para uma crítica de costumes ou a construção de uma sátira provocativa, como é o caso, novamente, de Lars von Trier, em Dogville. Todavia, se essa foi a intenção original, precisa ser reformulada com urgência.
Finalmente, a peça poderia ser mais enxuta, porque dá voltas desnecessárias em torno do mesmo tema. Os atores também não conseguem salvar em nada o espetáculo, tão limitados quanto os clichês que defendem no palco. Para mencionar um ponto: não há diferença entre eles antes e depois da bebedeira que permeia a noitada. Será que os seis personagens são igualmente resistentes à bebida? Porque estão iguais do começo ao fim, abusando de um histrionismo desnecessário. O que pode indicar que o álcool teve algum papel de relevo na peça é o conteúdo das cenas, os desdobramentos que acontecem, muitíssimo previsíveis também (assim como o final), mas e as mudanças que tamanho excesso etílico suscitariam, onde ficam?
E, à guisa de conclusão, pontuo que só escrevo essa crítica porque a programação de televisão já está dominada por conteúdos preconceituosos mais do mesmo, piadas apoucadas com o corpo da mulher ou com a potência viril masculina, tudo sempre igual; logo, ao sair de casa para ir ao teatro, escolhendo uma peça e não outra, esperamos algo diferente disso, saímos em busca de algum ineditismo, seja na temática, seja na dramaturgia, seja no texto, seja na atuação. Ou que, se não inédito, que seja bem feito. Aliás, aí reside também a importância do teatro na formação do público, que pode e deve ser mais exigente diante de espetáculos que reforçam estereótipos que só causam sofrimento. Infelizmente, ineditismo e arte passam longe da peça em questão.
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