Não é o asco dos norte-americanos às produções em outras línguas que justifica um remake de “Como Água para Chocolate”, uma vez que é possível se livrar de ler as legendas escolhendo a opção de áudio dublado em inglês no aplicativo da Max. É a resistência aos filmes “antigos” – que nem são tão antigos assim – que justifica o remake. O filme de Alfonso Arau foi feito há mais de trinta anos e deixou de fora várias passagens presentes no livro que deu origem a tudo. Sim, aí reside o cerne da série: adaptar com fidelidade e em sua língua original a história cheia de sabores e aromas de um amor impossível.
Tita de la Garza (Azul Gauita) e Pedro Muzquiz (Andres Baida) se amam, mas são impedidos de ficar juntos por uma tradição que obriga a filha mais nova a não se casar e cuidar da mãe na velhice. A mãe em questão está mais para madrasta má: é a austera Mamá Elena (Irene Azuela). A Pedro é dada a mão da irmã mais velha de Tita, Rosaura (Ana Valeria Becerril). Mesmo assim, o amor entre os dois perdura e desafia todos os – muitos! – obstáculos.
Um artigo inteiro poderia ser escrito apenas enumerando as diferenças entre as duas obras audiovisuais. Por exemplo: no filme Tita e Pedro se conhecem quando jovens, na série eles se conhecem ainda crianças e prometem amor eterno no primeiro beijo. Na série há também espaço para contar a história da empregada Nacha (Ángeles Cruz), que vive praticamente em regime de escravidão na casa dos De la Garza. Verdadeira figura materna para Tita, é interessante notar que Nacha e seu amor interrompido espelham a história da menina que a empregada criou.
O roteiro do filme ficou a cargo de Laura Esquivel, esposa de Alfonso Arau e autora do livro que primeiro contou a história de amor impossível entre Tita e Pedro e ainda trouxe no início de cada capítulo uma receita. No filme e no livro, a filha do meio de Elena, Gertrudis, tem pouco destaque. Ela ganha mais tempo em tela na série, interpretada por Andrea Chaparro, bem como aqui é explicada a forte ligação entre ela e a mãe.
Na série é dado mais destaque ao contexto histórico, que é a Revolução Mexicana (1910-1920). Doña Elena e Rosaura veem os revolucionários como bandos de peões vagabundos que querem, atiçados pela maquiavélica imprensa, tirar das pessoas boas o que elas conseguiram com trabalho honesto. Gertrudis, que foge com os homens armados, já diz que “não é preciso matar para ser revolucionária”. Pedro se envolve com os reformistas em seus tempos de estudante na capital, passando a ser fornecedor de armamentos quando volta para a fazenda, o que horroriza seu pai, que também vê os rebeldes como saqueadores e estupradores. O tio de Pedro, Felipe Múzquiz (Ari Brickman), está do outro lado, perseguindo, torturando e matando rebeldes.
O grande chamariz para a série é um ícone latino: Salma Hayek Pinault, que está atrás das câmeras como produtora executiva. Na primeira temporada temos dois diretores, ambos com grande experiência em séries: Julián de Tavira e Ana Lorena Pérez Ríos.
O realismo mágico tão caro à literatura latino-americana está presente quando lágrimas vertidas sobre a massa (no filme) e na cobertura (na série) de um bolo fazem todos que comem o tal bolo chorar copiosamente. Da mesma maneira, Tita consegue imprimir nas receitas o que está sentindo, seja desejo carnal ou uma felicidade desenfreada… ou outros sentimentos que configurariam como spoiler.
Tita foi uma mulher que viveu para cuidar dos seus, como viveram tantas outras em séculos passados. Como em toda boa novela mexicana, ela sofre, sofre, sofre e, como se não bastasse, sofre mais um pouco. Mesmo assim, a adaptação é bastante fiel ao livro e visualmente um deleite, não apenas por tratar de culinária. Enquanto não inventam uma televisão que possa transmitir também cores e sabores, nos deliciamos com esta bela história.
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