Como uma boa música e o seu refrão, fazendo uma comparação para com o gênero dos quadrinhos, um bom gancho pode manter o tom e o interesse do público. No caso das HQs, na maioria das vezes, não importa se a arte é excepcional, ou se a estrutura ou os personagens são bem escritos. Se o gancho puder ser reunido em uma frase de menos de dez palavras, vai chamar a atenção. Um órfão milionário é o maior detetive do mundo. Seis armas controlam o destino do mundo. Teenage Mutant Ninja Turtles e etc.
A Boom! Studios publicou ano passado Dead Letters, um título com um desses ganchos: detetive com amnésia se envolve numa guerra de gangues. Lá nos EUA, o Dead Letters Office é um serviço dos correios onde ficam armazenadas as postagens que foram enviadas para o endereço errado e não possuem endereço de retorno.
E o título joga com essa analogia e o storyteller em meio a uma premissa certamente previsível, mas que se torna interessante quando descobrimos que esse cara acorda no quarto nojento de um motel barato, com os braços enfaixados e um revólver na escrivaninha, como se tivesse num sonho. Contudo, ele não consegue se lembrar de nada, nem como chegou lá, sua identidade… absolutamente nada, como um pesadelo. E o pior, homens armados batem em sua porta, sabendo quem ele é, desejando matá-lo. O protagonista vai precisar de todos os truques na manga para cruzar uma terra estranha e maravilhosa, cheia de gangues sanguinárias, mulheres fatais e segredos!
A premissa do título é bastante interessante, soa como “Letras Mortas” e a história se apropria disso para narrá-la. Escrita por Christopher Sebela a HQ apresenta uma nova abordagem das clássicas histórias policiais, seguindo por um caminho sombrio e tortuoso que levará o leitor a lugares fantásticos e inesperados. Sebela escreve sua narrativa através do fluxo de pensamentos do protagonista, os acontecimentos ocorrem num ritmo caótico, que poderá não deixar uma boa impressão, mas segue adequadamente a premissa do esquecimento. Começa frenético e apressado, com bastante ação, e vai maneirando e excitando o leitor, dando um novo tom ao longo da narrativa até o momento do segredo que o autor constrói e descoberto por nós, surpreendendo como uma bala perdida.
A arte de Chris Visions é cativante e cinética. O desenho é virtuoso, com os traços e linhas, as cores, os tons, etc se assemelhando ao sonho/pesadelo em que o protagonista se sente preso. As cores, por sinal, se desvanece, falhando constantemente, como se o pincel tivesse passado só uma mão de tinta, mas nada que possa atrapalhar. Uma maneira de mostrar que a memória do personagem está embaçada e que lentamente rasteja de volta para uma claridade surpreendente sempre que consegue recuperar uma parte esquecida dela. É bonito e intrigante o que Visions faz.
Dead Letters tem tudo o que você procura em um quadrinho: o gancho bem desenvolvido ao longo do título, personagens atraentes com passados misteriosos, uma abordagem que continua sendo ampliado pelos números que o título está trazendo, a condução certeira de Sebela e Visions, em meio ao conflito de memória, sentimentos, de crenças e das gangues. Uma narrativa em um cenário disforme que pode parecer confusa, mas entretém bem. Recomendo.
Parabéns pela Devir por trazer mais esse bom título.
SERVIÇO:
Dead Letters
112 páginas
Devir Livraria