'Dois amores e um bicho' fala de uma faceta da natureza brutal do ser humano

Em virtude da comemoração de um ano de trabalho, os pais de Carolina a visitam no zoológico onde é veterinária, e é aí, nesse contexto de alegria e celebração, que um episódio do passado vem à tona, com as respostas nunca dadas a perguntas nunca antes formuladas: por que o pai havia sido preso quando a menina tinha nove anos, obrigando a família a visitá-lo e a pagar uma multa de 5000 dólares? Como diz a menina em algum momento do espetáculo: o momento de conhecer o pai é o momento exato de o perder. Ele não é mais aquele ser além do humano, intocável e sem defeitos, protetor e carismático, acima de tudo imenso, que segura o balão vermelho para se aproximar, junto com a mãe, da filha. Não. Ele agora revela sua natureza brutal, sua agressividade insana e patética e mostra como é bordejado pelos limites da ética.
O pai da jovem veterinária gosta de ir ao zoológico ver os animais e, quando está triste, sente-se, de algum modo, próximo afetivamente de alguns deles – o rinoceronte, talvez, e sua parecença subjetiva com o unicórnio – mas é também, paradoxalmente, aquele que mata um cachorro – o seu cachorro – a pontapés, por uma motivo esdrúxulo: investidas homossexuais no cachorro de sua esposa, a mãe de Carolina, que, como a filha, escuta pela primeira vez o real motivo dessa morte. E é claro que com a revelação desdobram-se facetas e camadas do agora ser humano que é também pai de Carolina, e do relacionamento que sustenta esse casal há anos (e pode estar à beira de se esfacelar).
Dois Amores e Um Bicho, de Gustavo Ott e direção de Danielle Martins de Farias, com Carla Guidacci, Ana Moura/Julie Wien e José Karini/Lucas Gouvêa, transpõe ao palco esse jogo de desvelamentos e decepções que tornam perigosa a relação a dois e a três. A plateia (ao observá-lo incitando os tigres) pode ter uma visão do personagem que matou os cachorros que parece apenas suspeita para a mãe e a filha: pai ou monstro? Ao mesmo tempo, outros episódios de morte e violência acontecem pela cidade, no passado que remonta à época da prisão do pai, e no presente, quando as aves do zoológico são tomadas por uma estranha e enigmática doença que as impede de voar. Assim, uma explosão que matou centenas de pessoas numa escola, terroristas em outro lugar, e a violência humana vai se revelando sem trégua, no mais íntimo de nós mesmos e no outro, que parece distante mas que é tão chegado.
O cenário, assinado por André Sanches, parece um emparedamento de caixas em tom neutro, por onde os personagens circulam, como se dessem voltas ao redor de si mesmos, de suas agonias, sem encontrar saída: ora estão no zoológico, perambulando entre jaulas e feras, ora estão em casa. A iluminação de Renato Machado também contribui para a paulatina construção e revelação das cenas, remontando aos animais e aos símbolos de referência de algumas datas, como a árvore de natal, contemporânea da morte do cachorro, quatorze anos antes. Acompanhando o tom das caixas, o figurino assinado por Raquel Theo também camufla a vida dos personagens nessas caixas, todas do mesmo tom, como blusas e calças, à exceção de uma saia vermelha e uma meia vermelha, que dialogam com o balão vermelho que está presente em cena durante a maior parte do tempo do espetáculo. Somadas a isso, as gaiolas que fazem referência às prisões relacionais que se deslindam no palco e aos animais enjaulados por motivos obscuros – um orangotango que seviciou (ou supostamente fez uma tentativa de seviciar) outro animal merece um corretivo?
São inúmeras as questões complexas que o texto e a dramaturgia de Dois Amores e Um Bicho trazem: a projeção de sentimentos e regras morais humanas nos animais, o ódio desmesurado que leva à morte como se fosse normal acontecer em todas as famílias, o silenciamento daquilo que já sabemos mas não queremos confirmar (e a atualização de certas verdades, ainda que tardiamente, com as consequências inevitáveis que carregam), a descoberta do outro e de si, o sadismo que habita, silencioso, em cada um de nós e que, sabe-se lá, pode explodir quando menos se espera.
A encenação é boa, em termos de conteúdo e de expressão dramatúrgica, com exceção do final, que parece querer dar um fechamento acabado e redondo a uma história que merecia a suspensão antes de um término que apontasse para a solução (ou resolução, ainda que prenhe de sofrimento) de conflitos abertos e explorados ao máximo.

FICHA TÉCNICA

Dramaturgia: Gustavo Ott
Direção: Danielle Martins de Farias
Elenco: Carla Guidacci, Ana Moura/Julie Wein, José Karini/Lucas Gouvêa (os atores se revezam)
Direção musical: Felipe Habib
Movimento: Toni Rodrigues
Iluminação: Renato Machado
Cenário: André Sanches
Figurino: Raquel Theo
Design Gráfico: Marcus Moraes
Realização: Notória Companhia de Teatro
Idealização e produção: Notórias Produções

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